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AGENDA

27/07/09

ler e respirar 9

Um dos melhores meses de Agosto dos últimos anos, passei-o a ler em trabalho. Explico-me: um editor amigo, sabedor de alguma das minhas manias e idiosincrasias literárias propõs-me que lesse uma tradução, pagando-me para o efeito uma soma bastante agradável.

Terá sido a primeira vez que ler foi, para mim, um trabalho pago. Munido, portanto, de uma edição castelhana, de altíssima qualidade, agarrei-me á tradução do “Quixote” e com dois marcadores, um azul e outro vermelho, mudei-me para as Rias Bajas, onde consumi doses excessivas de pimentos do Padrão (uns picam outros não!), ensaladilla, peixe grelhado, mexilhões ao natural, muitas saladas, mais mexilhões, variadas espécies de outros mariscos, empanada, bacalhau á biscaínha (na Galiza!), paellas e arroces divinos, mexilhões de novo, enfim, uma orgia a que só faltaram, por razões evidentes, o porquinho e todos os seus derivados. O porco, um dos grandes totens da península, a par do touro, não faz boa companhia no Verão. Nem o famoso “lacón con grelos” comida invernosa por excelência.

Portanto, o quixote. Pela décima ou décima primeira vez, desde uma ediçãozinha para crianças até á saborida tradução-traição de Aquilino. Anotando imperfeições, formas verbais, irritando-me com alguns arcaísmos que, na minha modesta opinião, mereceriam um liftinga actualizador, mas enfim. Li e reli. Passei nisso tardes inteiras á beira-água, comovendo-me com as desventuras do cavaleiro, com a bonomia de Sancho, com a ingratidão dos presos que o fidalgo liberta, com a sólida toleima dos paisanos da Mancha que vêem moínhos onde porventura há gigantes.

Leitores, sei bem, que o entusiasmo é mau conselheiro. Que deveria antes usar um argumentário erudito para dizer por que é que se deve ler o quixote. Deve? Tolice. Não se deve ler nada excepto, eventualmente, a literatura inclusa nos pacotes de medicamentos. Ler é um prazer, uma viagem à bolina, uma segunda vida, um momento de evasão, nunca um dever.

Este cavaleiro da triste figura cavalga desde há quatrocentos anos! Ainda nem tinha secado a tinta da primeira impressão e já estava a ser traduzido em inglês, francês, alemão. Apareceu logo uma segunda parte falsa que o próprio Cervantes teve de combater publicando também ele uma continuação da aventura. Afortunadamente!

O resultado aí está. A liberdade que avança pels caminhos da Mancha até um ponto difícil de encontrar. Ou fácil. Basta, para isso, ler o livro. E agradecer-me, depois, o conselho. Ou, melhor: nem é preciso. Os leitores, os verdadeiros, trocam estas dicas só pelo gozo. Que começa assim: “num lugar da Mancha, de cujo nome, não quero lembrar-me……”

* o escriba retira-se por algum tempo para as rias onde repetirá não a leitura mas os excessos gastronómicos que referiu aí em cima. Boas férias, boas leituras.

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