Viagem pelo planeta subterrâneo
"Viagem pelo planeta subterrâneo, revelação do labirinto ou da aporia, descida aos infernos. Crónica de um viver entre contextos de delapidação e precariedade. Texto premente, a cortar o real com mão precisa e bisturi, e para memória futura. Um livro, quero dizê-lo, raro e siderante. Não se lê à margem da emoção, do sobressalto. De relato em relato, história em história.
Numa escrita que renuncia a quaisquer adornos ou efeitos, se cola aos factos e exprime segundo princípios de rigor, concisão, clareza, sem nunca perder o registo das tensões e a variabilidade formal, Ana Cristina Pereira conduz o leitor pelos espaços e tempos da nossa derrota colectiva, da exclusão à violência, da miséria às solidões de cada idade do sofrimento e da desesperança. E é a eloquência do que, em regra, não vemos: cenários, personagens, situações no desabrigo das cidades ou nos meandros do crime. Aí estão, opostos a qualquer ingenuidade ou miserabilismo, toxicodependência e álcool, transexualidade, doença seropositiva, prostituição, assaltos, narcotráfico, a infância esbulhada onde sonhos e jogos afloram como último resíduo do humano. Nunca enquanto resultado de uma efabulação, nunca ao sabor do lixo sensacionalista ou das incursões de mera superfície.
E os nomes, as pessoas. D. Cândida, 76 anos, 15 filhos, “mais de 90 netos”, Liliano, os rapazes dos gangs ETA e PPR, Rita, Grilo, Siga, Rúben, que “mudou de rumo”, tantos, tantos outros. Episódios cujo fulgor de treva e pobreza em nós perdurará, entre inscrições legendárias da literatura ou do cinema realistas. O miúdo do triciclo sem a roda traseira na vila piscatória, desde logo. Por que páginas se esgueira, em que película ou tela? E, no entanto, não há ficções nem intencionalidade estética nos quadros e movimentos de Meninos de Ninguém, obra de jornalismo na sua realização mais exigente. Reporta-se o observado, quanto se ouviu e investigou, o imprevisto, a emergência ou o desvendamento dos entrechos a partir da gramática primordial, isenção e objectividade, busca do contraditório e das vozes que importam, apenas essas, num registo de alto quilate.
O leitor, assim posto no centro dos universos em chaga, fuligem, fractura, destroços que incendeiam, acabará percutido pela evidência e insusceptível de renúncia ética. Há o que urge remir, erradicar. Depois deste empreendimento notável de Ana Cristina Pereira, saberemos até que ponto a fragilidade das instituições e a inércia dos cidadãos se tornam uma afronta e um calafrio que não quereremos prolongar."
José Manuel Mendes (Escritor, Professor de Deontologia da Comunicação na Universidade do Minho, Presidente da Associação Portuguesa de Escritores)
mais textos e informação sobre o livro em:http://meninosdeninguem.wordpress.com/
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