e


a História como lembrança
a Cultura como companhiaUm dos melhores meses de Agosto dos últimos anos, passei-o a ler em trabalho. Explico-me: um editor amigo, sabedor de alguma das minhas manias e idiosincrasias literárias propõs-me que lesse uma tradução, pagando-me para o efeito uma soma bastante agradável.
Terá sido a primeira vez que ler foi, para mim, um trabalho pago. Munido, portanto, de uma edição castelhana, de altíssima qualidade, agarrei-me á tradução do “Quixote” e com dois marcadores, um azul e outro vermelho, mudei-me para as Rias Bajas, onde consumi doses excessivas de pimentos do Padrão (uns picam outros não!), ensaladilla, peixe grelhado, mexilhões ao natural, muitas saladas, mais mexilhões, variadas espécies de outros mariscos, empanada, bacalhau á biscaínha (na Galiza!), paellas e arroces divinos, mexilhões de novo, enfim, uma orgia a que só faltaram, por razões evidentes, o porquinho e todos os seus derivados. O porco, um dos grandes totens da península, a par do touro, não faz boa companhia no Verão. Nem o famoso “lacón con grelos” comida invernosa por excelência.
Portanto, o quixote. Pela décima ou décima primeira vez, desde uma ediçãozinha para crianças até á saborida tradução-traição de Aquilino. Anotando imperfeições, formas verbais, irritando-me com alguns arcaísmos que, na minha modesta opinião, mereceriam um liftinga actualizador, mas enfim. Li e reli. Passei nisso tardes inteiras á beira-água, comovendo-me com as desventuras do cavaleiro, com a bonomia de Sancho, com a ingratidão dos presos que o fidalgo liberta, com a sólida toleima dos paisanos da Mancha que vêem moínhos onde porventura há gigantes.
Leitores, sei bem, que o entusiasmo é mau conselheiro. Que deveria antes usar um argumentário erudito para dizer por que é que se deve ler o quixote. Deve? Tolice. Não se deve ler nada excepto, eventualmente, a literatura inclusa nos pacotes de medicamentos. Ler é um prazer, uma viagem à bolina, uma segunda vida, um momento de evasão, nunca um dever.
Este cavaleiro da triste figura cavalga desde há quatrocentos anos! Ainda nem tinha secado a tinta da primeira impressão e já estava a ser traduzido em inglês, francês, alemão. Apareceu logo uma segunda parte falsa que o próprio Cervantes teve de combater publicando também ele uma continuação da aventura. Afortunadamente!
O resultado aí está. A liberdade que avança pels caminhos da Mancha até um ponto difícil de encontrar. Ou fácil. Basta, para isso, ler o livro. E agradecer-me, depois, o conselho. Ou, melhor: nem é preciso. Os leitores, os verdadeiros, trocam estas dicas só pelo gozo. Que começa assim: “num lugar da Mancha, de cujo nome, não quero lembrar-me……”
Estarão presentes, de entre os autores (ver todos aqui), a ilustradora Ana Ramalhete e, já confirmados, os escritores Sara Monteiro e Paulo Kellermann
Viagem pelo planeta subterrâneo
"Viagem pelo planeta subterrâneo, revelação do labirinto ou da aporia, descida aos infernos. Crónica de um viver entre contextos de delapidação e precariedade. Texto premente, a cortar o real com mão precisa e bisturi, e para memória futura. Um livro, quero dizê-lo, raro e siderante. Não se lê à margem da emoção, do sobressalto. De relato em relato, história em história.
Numa escrita que renuncia a quaisquer adornos ou efeitos, se cola aos factos e exprime segundo princípios de rigor, concisão, clareza, sem nunca perder o registo das tensões e a variabilidade formal, Ana Cristina Pereira conduz o leitor pelos espaços e tempos da nossa derrota colectiva, da exclusão à violência, da miséria às solidões de cada idade do sofrimento e da desesperança. E é a eloquência do que, em regra, não vemos: cenários, personagens, situações no desabrigo das cidades ou nos meandros do crime. Aí estão, opostos a qualquer ingenuidade ou miserabilismo, toxicodependência e álcool, transexualidade, doença seropositiva, prostituição, assaltos, narcotráfico, a infância esbulhada onde sonhos e jogos afloram como último resíduo do humano. Nunca enquanto resultado de uma efabulação, nunca ao sabor do lixo sensacionalista ou das incursões de mera superfície.
E os nomes, as pessoas. D. Cândida, 76 anos, 15 filhos, “mais de 90 netos”, Liliano, os rapazes dos gangs ETA e PPR, Rita, Grilo, Siga, Rúben, que “mudou de rumo”, tantos, tantos outros. Episódios cujo fulgor de treva e pobreza em nós perdurará, entre inscrições legendárias da literatura ou do cinema realistas. O miúdo do triciclo sem a roda traseira na vila piscatória, desde logo. Por que páginas se esgueira, em que película ou tela? E, no entanto, não há ficções nem intencionalidade estética nos quadros e movimentos de Meninos de Ninguém, obra de jornalismo na sua realização mais exigente. Reporta-se o observado, quanto se ouviu e investigou, o imprevisto, a emergência ou o desvendamento dos entrechos a partir da gramática primordial, isenção e objectividade, busca do contraditório e das vozes que importam, apenas essas, num registo de alto quilate.
O leitor, assim posto no centro dos universos em chaga, fuligem, fractura, destroços que incendeiam, acabará percutido pela evidência e insusceptível de renúncia ética. Há o que urge remir, erradicar. Depois deste empreendimento notável de Ana Cristina Pereira, saberemos até que ponto a fragilidade das instituições e a inércia dos cidadãos se tornam uma afronta e um calafrio que não quereremos prolongar."
José Manuel Mendes (Escritor, Professor de Deontologia da Comunicação na Universidade do Minho, Presidente da Associação Portuguesa de Escritores)
mais textos e informação sobre o livro em:http://meninosdeninguem.wordpress.com/
A sua origem remete ao Brasil das décadas de 60 e 70, mas o termo é citado textualmente pela primeira vez na obra Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Este livro reúne uma série de artigos publicados por Boal entre 1962 e 1973, e pela primeira vez sistematiza o corpo de idéias desse teatrólogo.
A Sicília de outra maneira
Se Portugal fosse, do ponto de vista de séries televisas (já nem falo do cinema….) um pais normal, eu não me atreveria a falar deste autor. É que, correram em Itália, pela RAI cerca de dez ou doze filmes com as aventuras do comissário Montalbano. Darei também a referencia para quem quiser encomendar os filmes, aliás excelentes, e a melhor direcção italiana para os obter depressa e com segurança.
Hoje, e aqui, falaremos apenas dos livros.
Andrea Camilleri não é exactamente um desconhecido em Portugal, longe disso. Há que eu saiba, pelo menos, cinco livros dele editados pela Difel e não excluo que haja outros e até noutras editoras. A razão é simples: trata-se de uma série policial muito bem escrita, extremamente cativante, sem recorrer aos narizes de cera muito em voga quando se fala da Sicília, numa terra tão inventada que parece verdadeira.
Camilleri é um cavalheiro de provecta idade que só cerca dos setenta começou a publicar. De súbito, em pouquíssimo tempo, via seis ou sete dos seus livros, na lista dos dez mais vendidos. Não que eu me enterneça demasiadamente com estas explosões de devoção pública, basta ver com que lenha por cá nos aquecemos no que toca a best-sellers. Todavia, aqui, o clamor público é merecido: uma história sólida, uma linguagem viva, humor e, sobretudo, um par de personagens que, ao longo dos livros se vão tornando muito da nossa família.
O romance policial atravessa de alguns anos a esta parte um merecido momento de sucesso. À uma porque permite descrever uma sociedade bem melhor do que muitos romances tradicionais. Depois porque se libertou do “mistério” engenhoso com “M” grande e do detective sofisticado e omnisciente que, pelo menos no que me toca, desesperava o leitor por demasiado subtil.
No caso concreto estamos perante um comissário de polícia numa pequena cidade, bem na sua pele, guloso, sem ilusões quanto aos mecanismos do poder local e regional, tentando apesar de tudo levar a cabo a sua missão sobre um fundo de terra cansada de muita guerra (e a Sicília, onze vezes invadida por diferentes povos sabe-o bem) e enfrentando não só os seus específicos problemas mas também os que decorrem de um poder central distante e corrupto.
Camilleri que deu ao seu comissário o nome de Montalbano em homenagem a Manuel Vasquez Montalban tem no seu já vasto repertório mais duas outras séries que a critica apelida de “históricas”: uma dedicada aos mesmos locais mas durante a passagem do sec. XIX para o XX e outra mais próxima, sobre os anos do fascismo. Que eu saiba não estão ainda vertidas para o português. No entanto, o que há já chega para abrir o apetite e mesmo para o saciar, provisoriamente. A vossa excelente livreira fornecer-vos-á as informações necessárias. Por minha parte, resta-me recomendar calorosamente Camilleri. Fixem este nome: é boa literatura e, mesmo que isso pareça desqualificante, é boa literatura para o Verão.
Quem, porventura, esteja interessado nos dvd que referi, todos na série Montalbano, poderá encomendá-los em www.dvd.it (“Il comissário Montalbano”). Estão publicados doze títulos e dos primeiros dez há dois “cofanetti” de cinco títulos cada. Claro que a língua usada é o italiano mas isso já é convosco.
1º aniversário do Pátio de Letras
Jazz com os “IN Due II" (Carlos Barreto: contrabaixo; Miguel Martins: guitarra
(org. Patio@Bar)
6ª f 10 Julho, a partir das 21h30
“Memórias de Leonel Neves” - inauguração de exposição documental sobre o escritor farense e ilustrações de Tósan
sessão de fados com letra de Leonel Neves
(co-org. UALG)
17h30
“Olhão fez-se a si próprio” - apresentação do novo livro de António Rosa Mendes,
por Fernando Paulo Custódio e Arnaldo Matos (mais informação aqui)
21h30
“O Algarve mole e impressionista na poesia de João Lúcio” – conferência por Vasco Barbosa Prudêncio
(co-organização UALG e CIIPC; mais informações aqui)
22h30
"Ary dos santos, In Memoriam" - música e poesia por Afonso Dias
Dois contistas de excepção
E, já agora, dois excelentes romancistas! Falo-vos de John Cheever e de Truman Capote, quase da mesma geração, ainda que Cheever seja mais velho cerca de treze anos. Aliás pouco terão em comum, for a o facto de serem americanos. Cheever pinta os subúrbios enquanto o sulista Capote começa pelas prosas poéticas mas rapidamente, graças, a “A sangue frio” começa a ser reconhecido pelo seu realismo. A fama surpreende-o pouco e torna-se mesmo um dos escritores mais em voga nos Estados Unidos e na Europa onde desde muito cedo começa a ser traduzido. Compulsei agora mesmo, a sua estreia em Portugal, “A Harpa de Ervas” (Estúdios Cor) e verifiquei que o meu exemplar foi adquirido há precisamente cinquenta anos.
Cheever demorou mais a atravessar o Atlântico. Creio que começa a ser falado já nos anos setenta ou primeiros oitenta, o mesmo é dizer que já escrevera grande parte da sua obra, pelo menos a mais importante.
Todavia, não é dos romances de ambos que venho dar notícia mas apenas, como prometera, no último folhetim, dos contos. Dos magníficos, saborosíssimos, extraordinários contos. Ora aqui está boa leitura para o Verão. Entre dois mergulhos lê-se descansadamente um conto. Salutar e abre o apetite para um peixinho grelhado e uma salada. Outro conto, uma sesta reparadora, um passeio ao longo do mar, muitos amigos, a cervejinha do fim da tarde e por aí fora. A estação quente pede leituras boas mas com a natural intermitência que a vida balnear provoca. Ora nessa conjuntura, ou se tem em mãos um grande romance que por força se quer ler, ou o melhor é recorrer ao conto, arte maior muito desprezada hoje em dia, cá pelo burgo.
Justamente andam por aí à venda duas edições excelentes de contos destes cavalheiros. Ambas com a chancela absolutamente recomendável da Sextante, editora que tem um excelente catálogo (mesmo se também publique alguns produtos menos interessantes mas de escoamento rápido. Aliás, o que interessa, o que me interessa, é que haja bons livros publicados. Se para isso também se trazem á duvidosa luz do dia escritos menores não me ofendo. Ninguém me obriga a comprar tudo o que se publica mas apenas aquilo que quero, de que gosto ou que amigos avisados me recomendam.).
Se a memoria não me falha estão disponíveis o primeiro volume dos “Contos completos” de Cheever e a integral dos “Contos” de Capote. São edições recentes e, ao que sei, o público terá preferido ler antes os cavalheiros e cavalheiras que se notabilizam na nossa televisão. O mundo é assim e não há volta a dar-lhe. Ou como dizia o meu avô: “se puseres na Ribeira duas mesas de comida uma com iscas de fígado aldrabadas e outra com caviar podes ter a certeza que cai tudo na primeira e a segunda com sorte terá um só (feliz) comensal.”
Leitores, mesmo que um democrático e patriótico gosto pelos petiscos tradicionais seja de louvar não se esqueçam que há mais cozinha noutros lados. De comer e chorar por mais. E posso garantir que nos últimos meses não se publicou, no campo da ficção indígena, nada que se chegue ao Cheever ou ao Capote. Nada!
Para a semana falaremos de "policiais"
*esta secção muda de nome. de facto "ler e depois" é o título de um livro de Óscar Lopes e nem mesmo como homenagem (aliás justa) me atreveria a usar um título de outrem.
Sábado, 11 Julho, 17h30
António Rosa Mendes, é professor na Universidade do Algarve. Coordena o Mestrado em História do Algarve e o Centro de Estudos de Património e História do Algarve (CEPHA). Foi presidente de Faro, Capital Nacional da Cultura 2005 e responsável científico do Congresso Olhão, o Algarve e Portugal no Tempo das Invasões Francesas.
Olhão, que começou por ser um aglomerado de míseras palhotas habitadas por gente marítima, em menos de duzentos anos, de meados do século XVII aos inícios do século XIX, fez-se a si próprio freguesia e fez-se a si próprio vila com carácter e personalidade inconfundíveis. Uma fulgurante trajectória que exigiu muita tenacidade, sacrifícios, entusiasmo colectivo, todo um esforço sustentado por sucessivas gerações.
Resistiu aos poderosos inimigos que tudo fizeram por destruí-lo à nascença e depois paralisar o seu crescimento, e no decurso do século XVIII quintuplicou de um para cerca de cinco milhares os seus moradores, substituiu a maioria das palhotas por casas e assentou na pesca do alto e no comércio de cabotagem, lícito ou ilícito, o seu surto económico.
Em 1808, quando os invasores franceses se instalaram em Faro, a cujo concelho pertencia, Olhão era uma consolidada localidade de mareantes dotados de fortíssima vinculação comunitária e a quem o Compromisso Marítimo unificava. E é em Olhão que eclode, a 16 de Junho, o levantamento popular contra os ocupantes e contra as autoridades concelhias que com eles colaboravam. O povo enquanto tal irrompeu dramaticamente na cena pública como sujeito político activo, como força tanto física como moral. Foi pelo povo que Olhão se fez a si próprio.
Tal a história que neste livro se conta.
Quarteto N'ubanda in Concert ...
Paulo Rosa na guitarra