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AGENDA

30/06/12

John Boyne: e todos se vestiam como o rapaz do pijama às riscas

«And one final thought came into her brother’s head as he watched the hundreds of people going about their business, and that was the fact all of them – the small boys, the big boys, the fathers, and grandfathers, the uncles, the people who lived on their own on everybody's road but didn’t' seem to have any relatives at all – were wearing the same clothes as each other: a pair of grey striped pyjamas with a grey striped cap on their heads.»

John Boyne, The Boy in the Striped Pyjamas (2006)
Vi Dublin invadida de pijamas às riscas em forma de livro quando por lá andei em 2006. Na altura não dei grande atenção ao facto. Mais um bestseller na forja, pensei. Só me dei conta do exato sentido do traje referido no romance há uns dias atrás quando vi por acaso no pequeno ecrã da televisão o filme que o adaptara às telas de cinema. Espantoso. As tais histórias singulares que os livros às vezes nos contam. Assim. Sem mais nem menos. De improviso. Dentro e fora das páginas de papel que as suportam e das capas de cartão que lhe emprestam um primeiro rosto. John Boyne quis prestar homenagem a todos aqueles que nos campos de concentração, trabalho escravo ou extermínio nazi foram obrigados a vestir-se como O rapaz do pijama às riscas (2006), figura central duma ficção feita de factos acontecidos. 

As edições mais recentes da saga de Bruno e Shmuel aproveitaram-se do sucesso da película e do ar de inocência transmitido pelos jovens atores que dão corpo aos heróis da efabulação, para substituírem a imagem anterior a duas cores por uma outra mais tranquila pintada com todas as opções cromáticas do arco-íris. Os dois encontram-se sentados num chão de relva viçosa, pernas cruzadas, virados um para o outro, a partilharem confidências e a projetarem o futuro. Separa-os uma vedação de arame farpado e uma feição peculiar de vestir. Une-os um processo de amizade em construção e uma ausência de preconceitos no horizonte. O modo ingénuo de encarar a vida idealizado pelas crianças é confrontado com o modo calculista materializado pelos adultos de transmudar a vida a seu belo prazer. O leitor coloca-se na fronteira traçada por estas duas cosmovisões e converte-se no juiz dos conflitos que lhe vão sendo postos pela escrita minuciosamente tecida pelo autor. Os contrastes discursivos acumulam-se e o produto resultante acaba por demonstrar que a literatura não tem género definido nem idade limitativa. Tem é autores-leitores à altura. Caso contrário, resume-se a um conjunto de letras dispostas em palavras e frases que não cabem nas categorias ideadas pela arte poética. 

O episódio da gesta europeia recente retratado neste romance só pode ser remetido para o universo do juvenil e varonil, por ser protagonizado por dois rapazes de nove anos de idade, nascidos no mesmo dia, mês e ano, mas em contextos étnicos diametralmente opostos, o ariano da Alemanha nacional-socialista e o judaico da Polónia ocupada pelo Terceiro Reich, um em Berlim e o outro em Cracóvia, um regido pela cruz gamada e o outro pela estrela de David. Só assim se entende a candura manifestada por cada um deles ao pronunciar de maneira infantil «Fúria» pelo alemão Führer e «Acho-Vil» pelo polaco Auschwitz. Tudo se passa como se o autor tivesse pudor de registar a versão original das palavras-chave dos dramas vividos e as registasse pela inócua dos diálogos travados. O ponto de vista particular dos mais novos a questionar as interpretações dos mais velhos. A conhecida técnica usada por Jonathan Swift n’ As viagens de Gulliver, por Lewis Carroll na Alice no país das maravilhas ou por Saint-Exupéry n' O Principezinho. Os livros de adultos a refletirem o mundo infanto-juvenil tratado no seu interior pelas personagens que lhes dão alma e razão de existir. 

O encontro final do real e do imaginário faz-se na esfera discursiva da tragédia, marcado pela gramática teatral do disfarce, do fingimento e da máscara, pelo predomínio do discurso dialógico, pelo número reduzidos de atores e de recintos cénicos convocados pela ação. Os erros dos pais recaem nos ombros dos filhos. À boa maneira clássica da hybris helénica ou bíblica do pecado original judaico-cristão. Édipo é punido pelos crimes de Laio. Os descendentes de Adão e Eva são condenados à morte pela desobediência dos progenitores à vontade de deus. Os heróis findos do passado são trazidos ao convívio dos espetadores do presente pelo curto espaço de tempo da leitura do livro ou do visionamento do filme. A intriga desenvolve-se à frente dos nossos olhos, no palco. A catástrofe concretiza-se fora de olhares indiscretos nos bastidores. O castigo infligido aos filhos dos homens é representado discretamente no barracão dos duches oferecidos aos deserdados do prometido império dos 1000 anos. Implacavelmente. Sem apelo nem agravo.

Por razões que o meu subconsciente saberá explicar melhor do que eu, nunca gostei de me ver dentro dum pijama às riscas, daqueles de ir para a cama quando chega a noite, com a consciência tranquila, pronto para um sono reparador e algum sonho redentor. A associação das barras do tecido às grades da prisão deu-me sempre a sensação desagradável de claustrofobia, de falta de liberdade. É provável que o uniforme imposto compulsivamente aos condenados à solução final e ao holocausto me tivesse alimentado um pouco essa aversão visceral. Felizmente para todos nós que esses tempos de barbárie humana foram há muito erradicados da superfície da terra. O próprio feitor da fábula o afirma nas derradeiras linhas da fábula feita. Queiram os fados benfazejos e o bom senso dos homens que tenha razão. Aconteceram há muito tempo e não voltarão a repetir-se nos dias de hoje nem na época em que vivemos.

8 comentários:

suzel disse...

Gostei muito do seu texto Artur, como adorei o filme. Gostaria sinceramente que este tipo de histórias, não fizessem mais sentido... Mas pelo beco em que a Europa se está a meter, não teremos a certeza que histórias como esta não se repitam... Obrigada pelo texto e pela mensagem...

Tina disse...

Nunca li nada do John Boyle, mas vi o filme num dos canais da TV. Causou-me impressão pela abordagem de uma das épocas mais desumanas da história através da visão ingénua das duas crianças, num mundo de adultos completamente cegos pela discriminação racial.
"Out-With" (Acho Vil), como Bruno pronuncia na sua linguagem infantil, é na realidade um dos subterfúgios que aumenta a intensidade dramática do desfecho que a pureza de alma das duas crianças despoleta, cumprindo um final inevitável. A "barbárie humana" lesa sempre os inocentes... Desapareceu? E a guerra dos Balcãs, por exemplo, ou outras atuais, como na Síria? E a crise que grassa pelo mundo e poderá originar males maiores? A face negra do homem acaba sempre por vir ao de cima, mas é uma sorte aparecerem histórias que nos transmitam esperança. Esta lembra-me "A vida é bela", de Roberto Benigni, cujo desempenho ao lado do "filho" Guido nos fazem sorrir, mesmo quando as lágrimas caiam irresistivelmente no final. Também podemos iludir o simbolismo das feias riscas largas do "pijama". Consigo fazê-lo com o que uso agora, com risquinhas finas em branco, azul claro até ao azul escuro, embelezado com bordados delicados. Temos de ir vivendo um dia a seguir ao outro e é uma sorte alimentar a alma com histórias como estas!
Obrigada por mais esta magnífica recensão, Prof. Artur!

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Lembrei-me várias vezes d’ «A vida é bela» à medida que o drama d’ «O rapaz do pijama às riscas» se representava à minha frente, no ecrã da televisão e nas páginas do livro. Roberto Benigni e John Boyne oferecem-nos duas parábolas exemplares sobre a barbárie humana cometida num mesmo cenário europeu de intolerância racial e de genocídio radical. Em ambos os casos, o desenrolar da intriga está ancorado na ingenuidade dos mais pequenos de interpretarem o mundo dos crescidos. O desenlace dos factos narrados é que obedece a dinâmicas diferentes. Na versão italiana, o imaginário infantil salva Guido da dura realidade criada pelos adultos; na versão irlandesa, a inocência juvenil de Bruno e Shmuel condu-los diretamente à dura realidade criada pelos homens de maior idade. Ao pai judeu que salva o filho da morte a troco da sua própria vida opõe-se o pai ariano que conduz sem querer o filho à tal solução final que só destinara aos filhos dos outros. A ironia trágica, neste último caso, não podia ser mais forte, porque os erros dos pais acabam por se refletir integralmente no destino dos filhos.

Tina disse...

Andamos a comentar ideias semelhantes em locais diferentes... O blogue merece ser dinamizado devido a estas recensões pedagógicas, que muito agradecemos, pelo que transfiro para aqui o que escrevi no FB:
«Mencionei "A vida é bela" no blogue pela semelhança do tema, mas acho que Guido teve mais sorte do que ser poupado à solução final. Continuou a acreditar no jogo inventado pelo pai, ignorando a violência que grasssava no exterior. Coitado do Bruno, que sentiu o medo no seu dia a dia e acabou por vivenciar a violência na própria pele.»
A simbologia do pecado original, de raiz inegável para uma parte dos seres humanos, foi bem exemplificada neste romance, mostrando a face negra do homem. Ainda bem que aparecem filmes como "A vida é bela" para nos mostrar a face boa! Pobres de nós se não conseguíssemos inventar pijamas às riscas de cores bonitas para nos dar alento para prosseguir o caminho...

Anónimo disse...

O texto é encantador, fizeste-me viajar no tempo como que levada pela brisa a tantas recordações de infância os liliputianos, os gigantes, os cavalos fantásticos, a Alice no país das maravilhas, a toda essa forma de contar histórias infantis cruzadas com o mundo dos adultos. Adorávamos que a nossa Mãe nos contasse estas histórias adquando-as à nossa idade de crianças,de tal forma viajávamos por mundos mágicos. Eu e o meu irmão. Mais tarde li-as todas, foram tão bem concebidas. A questão nazi era diferente, desde pequenos que fomos progressivamente sabendo o seu significado, a minha Mãe, suíça, ajudara um casal judeu amigo a fugir da Alemanha pela Suíça, França e Inglaterra até Portugal. Eles depois seguiram para a África do Sul. Tudo era mais real, ela relatava as sirenes, a fuga para os esconderijos e os bombardeamentos quando da travessia da França...os vôos razantes dos bombardeiros que associávamos à Guerra da Coreia que acompanhámos em crianças à noite pela BBC que os meus pais faziam questão que ouvíssemos, e à Alemanha nazi, trazia-me noites terríveis de pesadelos, numa infância alegre, despreocupada, pacífica de brincadeiras e gargalhadas, no meio de animais , plantas e flores, trepadeiras que cheiravam bem, um mundo encantado... a força da imagem que tão bem descreves, da relva viçosa, do arame farpado, um menino de cada lado,pijamas de riscas multicolores, suavizando as riscas bicolores dos campos de concentração...um arco-íris é tão diferente de um azul e branco monótono rodeado de arame farpado, guardas armados e esqueletos humanos de correntes nos pés...adorei o texto Arthur!!! E vou ler o livro...beijinho, obrigada por partilhares.
Isabel Trüninger de Albuquerque

Anónimo disse...

Confesso que não li o livro nem vi o filme, talvez devido às numerosas acusações de que é "uma versão cor de rosa do extermínio judeu" e "uma absolvição dos alemães, por considerar possível não saberem o que se passava nos campos de concentração".
Mas tu, que o leste, terás uma opinião sobre estas críticas que eu, que não li, não tenho.
João Jales

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Trata-se duma ideia com pouca consistência. O filme segue à risca o livro e o desconhecimento exato do que se passava naquele campo só se aplica propositadamente à ingenuidade dos dois jovens protagonistas. pode ser estranho mas funciona bem em termos alegóricos. A estrutura trágica está presente em toda a narrativa, o que remete o romance para as altas esferas da criação artística literária.

creixomil disse...

O Artur apresenta a história, como se a prolongasse. Parece-me que os textos sugeridos estão incompletos sem o que lhe acrescenta. Não li este título, mas conheci o texto através da minha sobrinha já há algum tempo, que mo recontou com toda a carga humana. Vi o filme na tv há menos tempo. Apreciei a sugetão de leitura e a forma única e pessoal, mas científica, objetiva e muito humana do nmsso bom professor. O texto deverá servir de lição, como diz o Artur: «Queiram os fados benfazejos e o bom senso dos homens que tenha razão. Aconteceram há muito tempo e não voltarão a repetir-se nos dias de hoje nem na época em que vivemos.» Um abraço