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AGENDA

20/06/12

Per Olov Enquist: visita de médico ao rei da Dinamarca


«Johann Friedrich Struensee utsågs kungliga läkaren den danske kungen Christian VII den 5 april 1768, fyra år senare avrättades.»
Per Olov Enquist, Livläkarens besök (1999)
Todas as viagens são úteis para a aquisição de novas aprendizagens e experiências. Algumas delas conseguem mesmo mudar de modo radical pontos de vista pessoais até então tidos como definitivos. Uma passagem rápida por Copenhaga permitiu-me entrar em contacto com uma realidade escandinava que os roteiros turísticos geralmente ignoram ou a que imprimem uma ênfase muito reduzida. Convidam-nos a visitar castelos e palácios, a passear pelos parques e jardins que os enquadram, a fotografar os recantos mais aprazíveis que os alojam, mas omitem parte dos dramas que os seus proprietários aí vivenciaram. Acedi a alguns destes eventos pretéritos com a ajuda de Per Olov Enquist e d’ A visita do médico real (1999), através da escrita mágica dum autor sueco e dum romance histórico de enfoque dinamarquês, centrado na deslocação profissional do alemão Johann Friedrich Struensee à corte de Cristiano VII de Oldenborg e de Caroline Mathilde de Hanôver entre 1768 e 1772. Pequeno episódio aparentemente inócuo do Almanach de Gotha, que a Europa setecentista das monarquias absolutas do Ancien Régime comentou copiosamente em vários idiomas e depois remeteu para a órbita confortável dum esquecimento previsível.

Encarado desta forma simplista, o leitmotiv romanesco referido até pareceria roçar os limites da banalidade, se o obscuro visitante real não tivesse vivido um escandaloso caso de amor com a rainha e não tivesse implementado os alicerces da revolução dinamarquesa em nome do rei. Tudo isto em quatro anos que os anais oficiais consagraram com a designação de Era Struensee. O resultado de tão insólita efeméride é conhecido. A princesa da Grã-Bretanha e Irlanda foi obrigada a divorciar-se do rei da Dinamarca e Noruega e foi deportada para o castelo de Celle na Baixa-Saxónia. O até então médico, conselheiro e ministro do gabinete real foi condenado à morte por decapitação seguido de esquartejamento, sentença proferida mais pela implementação do processo de reforma do país do que pelo adultério cometido com a soberana. O tribunal que o julgou cortou o mal pela raiz, separando-lhe do corpo a mão que assinara os 632 decretos iluministas e a cabeça que os havia concebido e posto em prática. Por vezes vem-nos à lembrança o eco perdido doutros sucessos históricos cuja crueldade chocaram de igual modo o velho continente. A execução dos Távora (1759) serve de exemplo perfeito num contexto estritamente nacional. As semelhanças sangrentas são claras, conquanto a ação de Sebastião José de Carvalho e Melo, o ministro plenipotenciário de D. José I, tenha sido feita em nome no despotismo esclarecido do monarca fidelíssimo e não contra a sua concretização entre nós.

A urdidura dos factos é traçada com frases curtas, incisivas, clínicas, com o recurso a uma linguagem crua, sem falsos pudores, num estilo que certas práticas literárias reprovam mas que a natureza da matéria relatada justifica. O romancista fá-lo através da revisitação documental de confissões, relatórios, despachos, dissertações, jornais, escritos, notas, diários, livros e memórias. A oscilação discursiva entre luz e trevas é constante. O jogo dicotómico entre sonho e pesadelo, prazer e dor, realidade e ilusão, paixão e ódio invade o mundo imagético dos atores que dão corpo ao drama, levado à cena no país do lendário Amled, o príncipe louco celebrizado por Shakespeare com o nome trágico de Hamlet, um e outro referidos várias vezes na efabulação, sempre em confronto direto com Cristiano VII, o rei louco que passara toda a vida a representar o papel da corte no teatro da corte. O sentido paradoxal da peça assenta na tentativa absurda de se instaurar o reino da razão num reino entregue a um rei destituído de razão. A corte transforma-se num grande manicómio em que Struensee, o reformador idealista derrotado, é substituído nos labirintos do poder por Guldberg, o conspirador intriguista vencedor. Dois pequenos arbustos insignificantes entre árvores grandes e arrogantes. A aristocracia todo-poderosa podia voltar a respirar sossegada. A moral e os bons costumes tinham sido restaurados. O direito divino de governar os povos restituído às mãos do seu legítimo proprietário, i.e., dos seus leais colaboradores.

O romance mais conhecido do Prémio Nórdico da Academia Sueca começa com uma frase lapidar que sintetiza toda a fábula: «Johann Friedrich Struensee foi nomeado médico real do rei dinamarquês Christian VII no dia 5 de abril de 1768; quatro anos mais tarde foi executado». Felizmente para todos nós que o engenho e arte do escritor não se ficou por aí e nos introduziu nesse escasso período de tempo em que o livre-pensamento deu os primeiros passos decisivos nos palcos europeus e começou a mudar irreversivelmente o destino dos seus cidadãos. Os filósofos da revolução perderam a batalha dinamarquesa no reinado de Cristiano VII mas ganharam a guerra francesa no reinado de Luís XVI. E assim se faz a história, e assim se contam histórias...

3 comentários:

Tina disse...

E vivam as viagens, principalmente quando as pessoas nos trazem do melhor que nelas aprendem, por feitio e prazer. Pouco li de escritores nórdicos e sobre a história dos seus países, mas tive a sorte de ter uma irmã a viver em Copenhaga 10 anos, o que me proporcionou um pouco de conhecimento sobre a história deste país, que esteve mais de dois séculos sob o jugo da Suécia, onde igualmente tive a sorte de ir umas quatro vezes porque tenho dois irmãos a viverem lá há mais de 40 anos. Com eles aprendi um pouco destes países, especialmente nas andanças pelas ruas pois eles são pouco de museus, a não ser de vivos - característica muito nórdica, o adorar o ar livre - pelo que esta recensão me tocou especialmente e a trama do romance se me tornou mais atrativa. Do sangue que se derramou nos países europeus, sem exceção, todos sabemos um pouco, mas os romances históricos trazem-nos um pouco da vivência diária daqueles tempos, quando a tirania dos poderosos era exercida de forma bem parecida com a os nossos dias, em que a violência física continua infelizmente a ser um mal de raiz.
Dos vikings, cuja memória de pilhagens não nos abandona, lembrando igualmente a de reinos hipoteticamente mais desenvolvidos, existe uma história recheada de intrigas palacianas, cuja ponta de um véu nos foi aqui levantado.
Obrigada, Prof., pela partilha deste dom especial que possui, de pegar numa pena e delinear um texto que nos motiva a ler mais - e aprender, que os genes que legarmos aos vindouros agradecerão.

Suzel Almeida disse...

Pessoalmente, adoro romances históricos... Uma maneira mais simpática de aprender história sem ser nos grandes calhamaços com que estudámos... Obrigada por partilhar e dar sugestões professor! Agradeço e vou ler todos os que puder, e ainda não tenha lido. O meu bem haja! Reparei apesar de rainhas, eram mulheres como outras quaisquer, e que eu não gostaria de estar no lugar de nenhuma! Prefiro mil vezes ser quem sou...
Suzel Almeida

Suzel Almeida disse...

Pessoalmente, adoro romances históricos... Uma maneira mais simpática de aprender história sem ser nos grandes calhamaços com que estudámos... Obrigada por partilhar e dar sugestões professor! Agradeço e vou ler todos os que puder, e ainda não tenha lido. O meu bem haja! Reparei apesar de rainhas, eram mulheres como outras quaisquer, e que eu não gostaria de estar no lugar de nenhuma! Prefiro mil vezes ser quem sou...
Suzel Almeida