«Em que altura a criança troca a moeda de oiro da inocência pela agulha da perversidade?»Lídia Jorge, Praça de Londres. Cinco contos situados (2008)
Há tempos colocaram-me a questão de saber por que motivo a última colectânea de contos de Lídia Jorge, Praça de Londres (2008), estava a ter um acolhimento tão pouco expressivo por parte do público. Na altura não soube dar uma resposta satisfatória. Alguns meses passados, continuo na mesma. Revisitei atentamente os Cinco Contos Situados e voltei a sentir o mesmo prazer que o primeiro encontro me havia proporcionado. Trata-se de uma obra à altura das restantes que a autora nos tem vindo a oferecer regularmente ao longo de três décadas.
A dificuldade de identificar um fio condutor unificador de textos autónomos encontra-se aqui um pouco mitigada, por todos eles se centrarem em espaços urbanos concretos. O subtítulo eleito já nos acautelava para essa particularidade. Depois, a análise continuada da série é facilitada pelo magnetismo de escrita emprestado às instâncias narrativas, pela fluidez de discurso concedido às personagens, pela abordagem de tópicos postos à disposição do leitor. Remetem-nos, afinal, para um universo romanesco ímpar que só os grandes vultos da literatura logram atingir.
Na impossibilidade de tocar em todos os potenciais focos de interesse dos relatos, centrei-me num deles, nessa velha capacidade humana de fabricar histórias e de as transmitir a todos os interessados, de entrar nesse jogo de faz-de-conta, nesse debate partilhado de ideias. A verosimilhança dos factos imaginados nunca foi um obstáculo. Lídia Jorge não foge a essa regra de ouro da criatividade artística. Geralmente fá-lo através da voz experiente das mulheres. É o que se passa na totalidade dos fragmentos fingidos de vida em apreço. Como expositora de factos, como ouvinte de casos, como protagonista de eventos.
Em «Praça de Londres», seguimos a corrente de pensamento de uma transeunte anónima que se deixa surpreender pelas manifestações de afecto de um homem grisalho para com uma criança, talvez filha, com quem se cruza nesse recanto da cidade do Tejo. O insólito quotidiano documentado na «Rue du Rhône» está ligado à compra de uma mala de mão de senhora, em pele de crocodilo genuíno do Mississipi, episódio vivenciado por duas clientes portuguesas e uma vendedora suíça, numa loja dessa movimentada artéria de Genève. O palco dos sucessos volta à capital do nosso país, quando a protagonista de «Branca de Neve», uma bancária de sucesso, se sente perseguida por um bando de sete crianças na Avenida dos Estados Unidos. A «Viagem para dois» coloca-nos na presença de um criminalista e uma novelista, em trânsito ferroviário entre Milão e Veneza, em que o primeiro põe a segunda ao corrente de um estranho episódio que testemunhara em Lisboa e lhe solicita que, enquanto escritora de histórias de cordel, lhe dê uma forma literária conveniente. O livro encerra com «Perfume», o único inédito da série, composto como uma «Homenagem tardia a Yalmaz Güney» e desenvolvido em torno da fragrância emanada de uma história de amor muito particular, a dos pais do narrador do conto, repartida pelas principais cidades da Europa.
As sínteses estão feitas. Os pormenores ficam de reserva para os curiosos. Que a surpresa da descoberta persista para deleite de todos aqueles que, por um qualquer descuido, ainda não mergulharam na aventura da leitura, no mundo mágico dos heróis da imaginação. Quem sabe se no final dessa viagem não vislumbram uma resposta satisfatória para a questão inicial.
Na réplica literária de Lídia Jorge à história de amor contada pelo cineasta turco referido pode ler-se: «Diz uma velha canção que no fundo de uma garrafa se encontra a vida de um homem, e por certo que assim acontece desde que se inventou a fermentação do malte». A chave do êxito das obras de arte em geral e de um livro em particular só pode ser encontrada se tivermos o ousadia de a abraçar com todos os sentidos. Lídia Jorge pôs-nos a «garrafa» à nossa disposição, agora só temos de abri-la e ouvir todas as canções que ela encerra. De facto, não se trata de um fardo muito pesado para carregar.
4 comentários:
«Há tempos colocaram-me a questão de saber por que motivo a última colectânea de contos de Lídia Jorge, Praça de Londres (2008), estava a ter um acolhimento tão pouco expressivo por parte do público».
Esta questão, coloquei-a eu a mim próprio. Bastou-me estar atento aos escaparates das livrarias, nos meses que se seguiram à publicação do livrinho de Lídia Jorge, para perceber que 'Praça de Londres' estava longe de ser «êxito de vendas». Mas também não me recordo de ter visto ‘O Belo Adormecido’ na ribalta, sob o esplendor dos holofotes. E todavia, em ambos os casos estamos perante colecções de pedras preciosas de uma grande escritora. Mas aqui as jóias não se nos oferecem já lapidadas! É necessário que o leitor empreenda essa tarefa de polimento por conta própria para chegar à jóia escondida. De facto, não me parece que esteja na ideia de Lídia Jorge embarcar numa escrita fácil, destinada a seduzir à primeira vista. Vejo-a antes como uma escritora empenhada em desafiar-nos, a nós, potenciais leitores, para um jogo. E, sabe-se, num jogo, quem não se empenha perde. Trata-se, de facto, de «abrir a garrafa e ouvir todas as canções que ela encerra».
José Morais
A resposta está mesmo na aptidão desvelada na abertura da «garrafa». Neste caso e em muitos outros. A literatura é feita destas pequenas coisas. Quem quiser desfrutá-la, terá de se esforçar um pouco. Caso contrário não resulta.
Mea culpa, pois sempre fui uma leitora assídua de Lídia Jorge. Os seus romances fascinam-me pela dimensão humana que ela imprime ao relato dos personagens, transmitindo-nos vivências que fazem parte do nosso quotidiano e às quais, na maior parte das vezes, não damos a devida atenção.
A Lídia Jorge é uma escritora que considero de afectos, pois fala-nos dos desejos e aspirações de pessoas comuns com sonhos que não desistem de os realizar.
Não li os contos, mas sei que vou gostar e que vou aprender algo mais sobre o ser humano.
Contudo, julgo que, como eu, muita gente terá sentido nos últimos tempos a necessidade de organizar uma hierarquia de prioridades. Um livro é imprescindível, é verdade. Mas tenho de falar de um problema mesquinho face à importância da literatura: o custo de vida aumentou, com o desemprego a afectar muitas famílias, e muitos amantes da leitura, como eu, terão ter passado pelas montras das livrarias e deixar para a próxima a compra desse livro.
Mas surgirá a luz ao fundo do túnel, acredito nisso, num primeiro passo reorganizando as despesas familiares de forma mais racional. E muito livros que o Prof. Artur tem divulgado em súmulas tão sugestivas não deixarão de fazer parte das minhas leituras mas recentes - das minhas e de muitas outras pessoas, bem o acredito!
É pena que a hierarquia das prioridades comece a interferir com a leitura dos livros que nos são imprescindíveis. A dura realidade aí está a confirmá-lo todos os dias sem direito a contraditório. Espero que estas súmulas possam contribuir para a seleção dos textos que merecem a pena um pequeno sacrifício mais...
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