«Sois traître à l’Empire, s’il le faut, et rebelle aux décrets du Ciel, mais fidèle à toi-même, à la Lumière qui est en toi, parcelle de sagesse et de divinité.»
Amin Maalouf, Les Jardins de lumière (1991)
Amin Maalouf, jornalista e escritor libanês de língua francesa, estreou-se no mundo das letras com As Cruzadas Vistas pelos Árabes (1983). Seguiram-se-lhe uma dezena de outros títulos repartidos pelo ensaio, romance e libreto de ópera. O sucesso da obra cruzou fronteiras à escala mundial, transformando o autor num dos nomes de referência literária actual mais acatados pela comunidade internacional. O segredo tem residido no seu propósito de promover o diálogo constante do oriente com o ocidente, de fomentar o entendimento de todos os homens, de estimular o respeito pela diferença. Proeza facilitada pelo facto de ter sido cometida por um ser colocado entre dois mundos, entre dois padrões civilizacionais, entre dois paradigmas mentais, i.e., por espelhar a alma mediterrânea de um nativo árabe de criação católica exilado na Europa.
Essa experiência sui generis de vida e o gosto pelo discurso histórico empurraram-no para a composição de uma autêntica trilogia de biografias ficcionadas de grandes vultos da cultura universal, que o fenómeno da globalização tem vindo paula-tinamente a relegar para segundo plano ou mesmo a ostracizar. Depois de ter traçado nas páginas de Leão, o Africano (1986) e de Samarcande (1988) as principais etapas andarilhas do diplomata, geógrafo e humanista mouro de Granada Hassan Al-Wazzan / Jean-Léon de Médicis (1488-1548) e do poeta, matemático e astrónomo iraniano Omar Khayyam (1048-1131); Amin Maalouf conclui a série com Os Jardins de Luz (1991), onde nos convida a conhecer um pouco melhor a personalidade do pintor, médico e filósofo babilónio Mani ou Manes (216-274), o «Buda da Luz» para os egípcios, o «Apóstolo de Jesus» para os egípcios, o fundador do maniqueísmo para os vindouros, que somos todos nós.
O dualismo religioso patente no modelo profético apregoado pelo «Filho de Babel» resulta em grande parte dos percursos que a existência lhe foi impondo. A permanência forçada, por mais de vinte anos numa comunidade eremita de monges brancos, isolado dos homens e do mundo, a explicar-lhe a origem e explicação da intransigência; e as longas e continuadas peregrinações pelos espaços abertos do império sassânida, no seio das populações anónimas, a oferecer-lhe os germes de uma nova relação com o transcendente, ancorada na conciliação de todas as religiões. Na opinião do curador de corpos e almas, a verdadeira forma de assegurar a total liberdade do homem não pode partir da renúncia exclusiva ao mundo exterior, mas sim da descoberta do mundo interior que habita dentro de si. Só assim se poderá aproximar do «Pai», o «Todo Poderoso», única hipótese de vislumbrar a face do «Criador» de todas as coisas, o «Rei dos jardins de luz», sempre de braços abertos para acolher os inimigos das trevas.
Na luta incessante entre a tolerância e a intolerância, entre o bem e o mal, entre deus e o diabo, a vitória parece que tem vindo a inclinar-se para os segundos termos dos binómios destacados. Era assim nesse tempo recuado, continua a ser assim nos nossos dias. Ao manter-se coerente com as suas convicções pessoais, com as suas crenças e doutrinas, Mani deixou escapar a oportunidade de garantir a canonização da sua fé, a institucionalização da sua igreja e a sobrevivência do seu pensamento. O «mensageiro da paz» morreu martirizado quando aconselhou o imperador persa a resolver os conflitos bélicos com o imperador romano pela via diplomática. A força da guerra foi mais forte do que a da concórdia. As lições da História têm servido de pouco para a formação de todos nós.
Fundado no século III da era comum, como um sincretismo do zoroastrismo, do budismo e do cristianismo, o maniqueísmo é hoje em dia uma religião extinta e o seu fundador um profeta sem seguidores. Neste sentido, os sistemas religiosos alicerçados por Buda, Jesus e Maomé tiveram um destino bem diferente do idealizado por Mani. A humanidade que promoveu esta selecção natural que o diga. Amin Maalouf, pela sua parte, já cumpriu sobejamente a sua missão.
3 comentários:
Fiquei fascinado por Malouf com a leitura de "As Cruzadas...", como fico sempre com a outra perspectiva de tudo o que nos habituamos a ver da mesma forma, do mesmo ângulo, sem questionarmos. Li, depois, vários dos seus livros.
Esta abordagem do maniqueismo, apesar de situada no séc. III, fala do fanatismo e da intolerância de sempre, em que se envolvem todos os que buscam em fórmulas de outros a libertação que só existe dentro de cada um de nós.
Excelente recomendação de leitura.
João Jales
Amin Maalouf tem mesmo essa capacidade inata de nos fascinar. Comigo, tudo começou em 1986 com «O Leão Africano». Depois disso, o magnetismo da escrita nunca deixou de funcionar. É o segredo de quem tem coisas para contar e sabe como fazê-lo.
E eu fiquei fascinada com esta análise literária, que me vem confirmar o que de pouco sabia sobre Amin Maalouf, nomeadamente depois de ver uma entrevista dele feita pelo José Rodrigues dos Santos, na minha opinião de forma pouco brilhante. Valeu o carisma do escritor, que respondeu com elegância e simplicidade, próprias de um homem culto, às questões levantadas, deixando-me perfeitamente cativada.
Agradeço a sugestão de leitura, tanto mais que é do género histórico que mais me seduz.
Enviar um comentário