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AGENDA

07/05/10

Roberto Bolaño, 2666 e o número da besta apocalíptica


«Pero ella se preguntaba (y de paso les preguntaba a ellos) hasta qué punto alguien puede conocer la obra de outro.»
Roberto Bolaño, 2666 (2004)
O mundo não acabou em 666, nem em 1666 e ninguém pode afirmar, no seu perfeito juízo, que terminará em 2666. Em nenhuma das 1100 páginas do 2666 (2004), que Roberto Bolaño nos deixou para publicação póstuma, se refere essa cifra mágica. Salvo no título da obra que dá unidade a este romance de novelas, nalguns casos meros contos ou arremedo fragmentário. As interpretações que o editor dos manuscritos dispersos do texto nos fornece são engenhosas, mas nunca passarão de meras conjecturas à espera de uma confirmação mais consistente. A leitura atenta das dezenas de histórias que compõem este labirinto de palavras remete-nos sempre para o tal número da besta. O apocalíptico. O abismo a atrair-nos fatalmente para o precipício.

Das cinco novelas independentes imaginadas pelo autor, resultou um volume único repartido por cinco partes autónomas orquestrado pelos herdeiros. Lido o livro, ficamos com a sensação de ter sido uma medida acertada. A ordem escolhida nem parece arbitrária. Tudo começa e acaba em Beno von Arcimboldi. O escritor misterioso procurado em vão por quatro professores e críticos de literatura alemã, o inventor de histórias alheias a revelar-nos, no final do relato, a história verdadeira da sua própria existência. A ficção disfarçada de factual. Os alicerces programáticos do infrarrealismo poético transferidos para as sinuosidades específicas da prosa. Pelo meio, fica-nos ainda um punhado considerável de episódios centrados na figura do filósofo chileno e refugiado político Amalfitano e na do jornalista afro-americano e activista político Fate. As nótulas descritivas das 110 mulheres assassinadas em série completam a trama. A cidade de Santa Teresa, situada na fronteira do México com os Estados Unidos, a convocar todos os intervenientes dos eventos narrados para um espaço cénico único, para um local de encontro/desencontro do homem com o seu próprio destino, para um palco do mundo em que todos nós somos, simultaneamente, os espectadores e actores de um mesmo drama de vida e morte.

O lançamento do romance conheceu um sucesso imediato mas meteórico nos meios cultos circundantes deste nosso cantinho atlântico. No curto período de tempo que atravessou as altas esferas siderais, iluminou tudo em seu redor. Depois extinguiu-se completamente sem deixar rastro atrás de si. As causas deste fenómeno não estão apuradas mas são fáceis de deduzir. A fama de obra-prima que os mass media lhe conferiu precedeu a sua publicação efectiva entre nós. Se a revista Time já afirmara tratar-se do «acontecimento literário da década», lá teria as suas razões bem fundadas em propagar essa nova por toda a parte, qual bênção papal urbi et orbi no início de cada ano. Confrontado com a monumentalidade da fábula, o vulgo assustou-se. Leu as primeiras páginas, saltou outras e evitou as restantes. A falta de tempo, entretanto aduzida, continua a ser um argumento de peso. Categórico, eficaz, tranquilizador.

Pessoalmente, li o 2666 de fio a pavio, sem hesitações e com muito prazer. Sobretudo porque não admite sínteses nem continuações. Por vezes fui obrigado a interromper a leitura, mas nunca procurei desculpas esfarrapadas para deixar de o fazer. Trata-se de um texto fascinante que só peca por ter um fim anunciado. Sinal de que a opinião abalizada de alguns críticos ainda pode merecer o nosso crédito. O universo académico das conferências, congressos e simpósios alterna com o universo policial dos homicídios, violações e estrangulamentos. O mundo dos enigmas, segredos e mistérios atravessa toda a tessitura discursiva a um ritmo alucinante. O terror, erótico e onírico a concorrer com o anedótico, grotesco e repulsivo. Tudo isto protagonizado por dezenas de figurantes representantes de todos os estratos e camadas sociais, dispersas pelo velho e novo continentes. As figuras politicamente correctas não abundam, são todas elas banalíssimas nas suas estranhezas. Tal como nós, personagens da vida real. Este talvez seja o grande segredo que Roberto Bolaño conseguiu imprimir à sua obra magna. Essa a razão do magnetismo poético das palavras que empresta ao discurso e oferece aos leitores. Todos nós nos vemos retratados nesse entrecruzar ecléctico de experiências imperfeitas. Sem uma solução de vida expectável que não seja a própria morte. Inexoravelmente certeira nos seus desígnios.

5 comentários:

Liliana disse...

Ora viva Artur, seja bem REaparecido:) Este Bolaño ainda não li, o comentário é por isso mesmo e só para saudar o seu regresso:)

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Nunca estive afastado, as demais tarefas do dia-a-dia é que me têm tirado a visibilidade...

Casa da Ginja disse...

Também li, de fio a pavio e com entusiasmo.
Descrições houve que quase me deprimiram, à procura da chave para descobrir (adivinhar?) onde começava a ficção e terminava a realidade, e vice-versa. Há descrições, das mulheres assassinadas e de algumas cenas do sub-mundo, que são terríveis, macabras, angustiantes.
Não voltarei ao 2666 mas vou regressar ao autor, um dia destes ...

J J disse...

Li "Os Detectives Selvagens" no verão, sem grandes referências críticas, uma daquelas compras por palpite, baseado em duas ou três menções a Bolaño lidas aqui e ali. Não me arrependi, claro, e comprei os outros livros do autor.

O problema é o conflito entre os livros e o tempo (o nosso, claro) e 2666 aguarda ... um dia que...

Já esteve à minha cabeceira mas depois de London Fields continuei pela Viúva Grávida (talvez o regresso de Amis ao seu melhor), o novo Ian McEwan era irresístivel (uma fixação pessoal), Os Números Primos foram uma excelente surpresa "imposta" (em boa hora) por um amigo e ainda não recuperei completamente de O Jogo do Mundo de Cortázar... Este verão será certamente aaltura ideal,porque hoje é a Julieta,Nua que espera por mim.

Só falei de mim e não da sua excelente recensão ao 2666 que aumentou (se possível) o meu desejo de o ler, mas é esse o problema de abrir espaço aos outros nos nossos blogues...

Abraço

JJ

Tina disse...

Uma recensão que li então mas, sem explicação, não deixei um mero comentário que a qualidade do texto merece.
Ainda não li o livro, não por falta de tempo mas talvez porque a visita às livrarisas me foi recusada por um tempo instável na minha vida, Mas que, escreve com palavras mágicas abre o meu apetite para ler. Obrigada pela partilha, Prof.!