Carlos Ruiz Zafón, Marina (1999)«Marina me dijo una vez que sólo recordamos lo que nunca sucedió.»
Viciei-me na arte de contar de Carlos Ruiz Zafón com A Sombra do Vento (2001) e O Jogo do Anjo (2008). Li-os de seguida como se tratasse de duas partes da mesma obra. Depois, tal como muitos outros leitores da aldeia global, virei-me para os títulos mais antigos. A escolha recaiu em Marina (1999), um texto charneira situado na fronteira entre dois universos de escrita, o luminoso da novela de aventuras para jovens e o sombrio do romance gótico para adultos. Encontrei-o à minha espera numa livraria. Resgatei-o e dei-lhe vida ao ouvir tudo aquilo que tinha para me dizer. Revelou-me muitas coisas surpreendentes. Fico-me pelos meros apontamentos.
A revelação de enigmas guardados num «cemitério dos livros esquecidos» não voltou a ocorrer. Em contrapartida, o desejo de desvendar os mistérios de Barcelona, «a cidade feiticeira», «a metrópole modernista», onde as peripécias de contorno folhetinesco se vão sucedendo a um ritmo vertiginoso, ao sabor da imaginação do autor e prazer do leitor, repetiu-se mais uma vez. A fluência do discurso, o ritmo da escrita e a magia das palavras são os culpados. Avassaladores, inebriantes, únicos.
A pedra de toque novelesca é-nos transmitida por uma «borboleta negra de asas abertas», gravada nos lugares mais bizarros ou a esvoaçar à volta das personagens mais nebulosas, nos momentos mais insólitos da intriga. Atrás de si paira sempre o fedor dos pântanos e dos poços envenenados. Pormenor reiterado à exaustão pela instância narrativa, a fim de balizar a luta sem quartel pela sobrevivência. É que, como é sugerido, a diabólica Teufel, habitante de torres, caves e túneis privados de luz, tem a capacidade de ressuscitar de entre os mortos. Enterra o corpo antes dessa metamorfose macabra e alimenta-se depois das próprias crias.
Em termos gerais, o romance propõe-nos uma reflexão continuada sobre os mistérios da condição humana, através do relato alternado de três histórias de amor e morte: a nuclear de Óscar Drai e Marina Blau, a celestial de Germán Blau e Kirsten Auermann e a infernal de Mijail Kolvenik e Eva Frinova. Tudo somado, atravessam todo o séc. xx e têm como pano de fundo privilegiado a malha urbana da cidade condal, convertida na efectiva protagonista das diversas peripécias trágicas que nela se vão traçando.
A acção central do livro decorre entre Setembro de 1979 e Maio de 1980, período simbólico de nove meses, durante o qual dois jovens de 15 anos vêem nascer, crescer e fenecer um primeiro amor de adolescência. À distância confortável de quinze anos, o herói sobrevivente revisita os locais onde os eventos se deram e confia as suas recordações às páginas de um diário pessoal, aquele que chegou até nós sob a forma de um romance de aprendizagem.
Quando a leitura termina, esquecemo-nos de que «todos os contos são mentiras, mas que nem todas as mentiras são contos», e sentimos uma vontade muito forte de partir à descoberta de Barcelona, a cidade misteriosa, na esperança vã de vislumbrar o Grande Teatro Real, o Palacete de Sarriá ou a Torre do Parque Güell, ao encontro dos palcos em que se representaram as cenas mais marcantes do drama. Sentimos o impulso imperioso de nos sentarmos ao volante de um velho Tucker dos anos cinquenta, à procura da praia secreta virada para o Mediterrâneo, local idílico que os heróis pisaram uma única vez, a meio da sua história de amor, e onde Óscar verá lançar as cinzas de Marina, produto final da sua história de morte.
Carlos Ruiz Zafón confessa no prólogo que acompanha a reedição mais recente de Marina (2008) ser esse um dos seus livros favoritos, aquele que permanecia tão presente na sua memória como no dia em que o acabara de escrever (1997), rematando com uma ideia que depois incorporará na ficção, na boca da heroína: «Por vezes, as coisas mais reais só acontecem na imaginação (...) só recordamos o que nunca aconteceu».
7 comentários:
Alguém sabe para quando a tão expectante tradução de Marina para português?
Obg
Com este texto impregando da paixão que o romance despertou, a mim resta-me partir sozinha à descoberta de tanto mistério e suspense vivido ficcionalmente nas ruas de Barcelona, a feiticeira. Uma cidade que me seduziu irremediavelmente quando tive a sorte de lá estar durante cinco dias, explorando ao máximo o tempo de que dispunha para trabalhar e conhecer cada recanto gótico, moderno ou surrealista da bela capital catalã. Se for em espanhol, maior ainda será o fascínio que vai exercer sobre os meus sentidos, agora despertados por esta feliz descrição.
Boa tarde.
A edição portuguesa do livro Marina, de Carlos Ruiz Zafón, sairá depois do Verão (final de Setembro) com a chancela da Planeta.
Obrigada.
Agradecemos a informação.
Boas notícias para os leitores portugueses...
Passado quase um ano sobre este excelente texto do Artur, volto à leitura de Marina e à respigagem dos mistérios gótico-zafonianos dessa Barcelona a que sempre se retorna.
Zafón é o melhor escritor que eu já vi.
Entende sobre a melancolia e restringe a vida a uma mínima linha entre sonhar e morrer.
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