«All errata is a falsehood final.»George Steiner, Proofs And Three Parables (1992)
A forma peculiar como George Steiner aborda a questão da nossa identidade cultural, em A Ideia de Europa (2005), convidou-me a mergulhar na restante obra do autor que até então ignorava. O prazer tem vindo a crescer à medida que os títulos se sucedem. Mesmo quando o universo do ensaio deu lugar ao da ficção. Comecei com Provas e Três Parábolas (2008). Voltei a render-me ao fascínio do mestre. Incondicional-mente. Trata-se de um grupo de quatro textos que já haviam conhecido uma publicação autónoma: Provas (1991), Desert Island Discs (1986), Noël, Noël (1989) e Excerto de uma conversa (1985).
O relato inicial apresenta-nos um «revisor de provas» italiano, cujo rigor profissional, de mais de trinta e cinco anos, convertera num «mestre do ofício». Ignoramos o seu nome ou a cidade onde vive. Só sabemos que a militância comunista de décadas lhe granjeara o título de Professore. A história fictícia da personagem acaba por se demudar na história verdadeira de pessoas reais, de carne e osso, que a memória dos homens esqueceu. A queda do muro de Berlim, difundida pela televisão, vai gerar um longo diálogo entre protagonista e um sacerdote católico sobre os erros e mentiras do marxismo e do cristianismo, cometidos pelas leis dos homens e de Deus. O resultado do debate é inconclusivo. Terá de ser o leitor a exercer o privilégio de decidir quais os actores mais adequados para promover uma eficaz «revisão de provas da história».
A primeira parábola deve o título ao programa homónimo da BBC, que desde 1941 pede a figuras conhecidos sugestões de livros e discos a levar para uma ilha deserta. A entidade convocada pela ficção solicita seis registos, a que o «arquivo sonoro» da estação de rádio consegue responder. O «arroto» de Fortimbras (Shakespeare, Hamlet); o «relincho» do cavalo do rei de Tebas ao ver o amo morto (Sófocles, Rei Édipo); o «rangido» do aparo de Clausius ao concluir a «equação da entropia»; o «riso» da amada ao ser beijada; o «Trio em Fá Maior para trompa, contrabaixo e conchas de Samatra», de Sigbert Weimerschlund (?), gravado por Zeppo, Harpo e Chico (Marx Brothers); e o «assobio» do jovem pintado «Pelo Mestre da Paixão de Chambéry». E é tudo. Mais uma vez, cabe-nos a nós proceder às pesquisas necessárias para determinar até que ponto esses pedidos podiam ter sido «guardados na memória» de alguém.
A parábola seguinte expande-se em torno dos «sons» e «cheiros» que tornam o Natal uma época tão especial. O assunto acabaria aqui se não se desse o caso de ser contado por um «pedaço de bicho tristonho», o «Caça-Ratos» / «Pé Ligeiro», o cão de estimação daquela família feliz formada pelo pai, pela mãe e pela filha Penny. Trata-se, afinal, de uma inesperada fábula.
A série termina com o «Excerto de uma conversa» travada entre dois estudiosos do Talmude. Mestre e discípulo discutem o problema do livre arbítrio do Homem face à presciência de Deus, focado no drama de Abraão de sacrificar Isaac ou na vanidade do Todo Poderoso testar a fé do seu humilde servo. A diferença fulcral entre os crentes da Torah e dos Evangelhos reside, talvez, no facto do Deus de Moisés não se ter coibido de matar todos os primogénitos do Egipto para garantir o êxodo do povo eleito para a terra santa, ao invés do Deus do Nazareno que ofereceu a vida do filho unigénito em sacrifício à cruz romana para salvar a humanidade.
Ancorados em esferas aparentemente distintas, os quatro pilares da colectânea acabam por conectar as matrizes culturais que enformaram a «Ideia de Europa». Duas frases escritas numa paragem de autocarro atraem a atenção do corrector de provas: «Deus não acredita em Deus» e «Deus não acredita no nosso Deus». Sinais dos tempos. Diremos nós. Na última parábola, uma mulher, pesarosa com o silêncio a que os «Livros Sagrados» votaram o drama de Sara, interroga os cabalistas sobre as sílabas que revelam o «Nome secreto de Deus» e nos farão a todos «livres». Boa questão à espera de resposta. Todavia, o «Nome dos Nomes» encontra-se guardado desde sempre no «Livro dos Livros». Na nossa imaginação divinamente humana ou humanamente divina. É tudo uma questão de perspectiva ou de sensibilidade pessoal.
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