«Das Leben ist nich das, was wir leben; es ist das, was wir uns vorstellen zu leben»
Pascal Mercier, Nachtzug nach Lissabon (2007)
Ofereceram-me as imitações de vida imaginadas por Pascal Mercier no Comboio noturno para Lisboa (2007) há cinco anos atrás, quando estava de passagem não programada num hospital. Adiei então a sua leitura imediata, porque à época me apetecia mais ouvir histórias contadas por palavras ditas do que decifrá-las por palavras escritas. Só voltei ao seu convívio algum tempo depois, já na tranquilidade do lar, entregue a uma recuperação sossegada e sem sobressaltos. Fi-lo sem grande entusiasmo. A viagem de revisitação ao passado duma cidade e dum país, marcados ainda pelas sombras percetíveis da ação governativa do ditador de Santa Comba, soou-me um pouco a falso. As deambulações encetadas por um professor suíço de línguas clássicas, no rasto dum desconhecido escritor português, pareceram-me pouco convincentes. O mal-estar existencial sentido pelo médico antifascista e patriota, que salva um esbirro do regime e é tido como traidor pelos resistentes, esboça um cenário de representação histórica pouco credível. A minha prática de leitor atento tem-me transmitido a ideia, talvez errada, de serem pouco habituais os toques de ironia trágica no país dos brandos costumes, mais propenso a outros efeitos estéticos de dimensão dramática.
A estreia mundial da versão filmada trouxe-me à memória o romance que havia esquecido por completo, abandonado à sua sorte num recanto menos frequentado da minha biblioteca caseira. Deixei escapar a projeção da película no grande écran e protelei o seu visionamento para daqui a alguns anos numa qualquer sessão televisiva. É que as adaptações ao cinema de obras literárias são sempre muito duvidosas e redutoras das potencialidades poéticas contidas nas páginas dum livro. Preferi correr o risco de relê-lo com um olhar mais favorável e distante no tempo, sem preconceitos, como se estivesse a fazê-lo pela primeira vez. O resultado foi dececionante. A impressão negativa com que ficara da anterior abordagem voltou a instalar-se. Visão muito pessoal que não põe em causa a opinião contrária de todos aqueles que converteram o relato num sucesso editorial à escala global, num best-seller traduzido para os mais diversos idiomas e com muitos outros a preparar a sua entrada em cena. As leis imutáveis do livre-arbítrio põem-se ao serviço de todos e garantem-lhes que em literatura ninguém é obrigado a partilhar as preferências | rejeições alheias. A potencial qualidade duma obra depende em grande parte dos olhos que a contemplam. As mãos que as talharam estão completamente subordinadas a esta realidade.
Em linhas gerais e traços breves, a viagem noturna para a capital dum império extinto fez-se por comboio, porque o protagonista sentiu um impulso inadiável de ouvir ao vivo a sonoridade melodiosa do idioma português, tão diferente da do alemão materno, e porque o trajeto feito por avião ser muito rápido e anular as perspetivas de distanciamento. Norteou-o, ainda, o propósito firme de partir à descoberta, em Lisboa, do autor duma nova vida pautada por uma nova linguagem, anunciada sugestivamente n’Um Ourives das Palavras, título dum livro encontrado por acaso numa livraria de Berna. Peter Bieri assume o pseudónimo literário de Pascal Mercier e insere um ensaio de cariz filosófico na estrutura discursiva dum romance de pesquisa da palavra, da sua natureza, plasmada em todas as suas dimensões. A palavra moribunda de deus, pronunciada em nome do amor e do ódio, da vida e da morte, do crime e castigo, a palavra imaginada pela poesia impressa em forma de letra ou feita de sons articulados. Palavras do passado a renovarem as palavras do presente. Os textos intercalados na tessitura narrativa, distribuídos por cartas, diários, reflexões e apontamentos de vária ordem, aludem à ditadura das palavras erradas e à liberdade das certas, ao silêncio do mundo antes da invenção das palavras, à vertigem causada ao homem quando perde a memória das línguas e das palavras que as conformam. No início era a palavra e no final a sua ausência. O sonho do fim do mundo é também, por esta via, o pesadelo dum mundo sem palavras.
A verdade judicativa dum relatório crítico de leitura é sempre falível. A verdade absoluta é uma falácia. Todas as interpretações são potencialmente válidas. As nossas não fogem à regra. Sugeriria uma visita confiante a cada livro que se nos atravesse no caminho e uma saída rápida se a sensação de desconforto se instalar. E depois há tanto livro por aí à procura de leitores...
3 comentários:
Não conheço o livro nem o autor. Se o livro não ganhou a tua preferência, a tua recensâo fez-lhe ganhar com a crítica franca e equilibrada que te mereceu, ao invés, com as palavras que tão bem sabes dar vida. Também não costumo correr atrás de um titulo ou de um filme que se torna célebre de repente pois, como bem dizes nas tuas sábias palavras, os gostos são diferentes e porque me acontece frequentemente não concordar com o que muitos classificam uma obra prima. Cito o exemplo do livro "África Minha", cuja adaptação ao cinema ainda hoje me fascina e cujo enredo, nas palavras escritas, me deixou frustrada. Verei o filme e lerei o livro quando calhar...
Obrigada pela partilha da recensão, mais brilhante ainda pelo objeto ser um livro que não te agradou epela humildade em não impores a tua opinião...
Achei o livro desde logo interessante por um motivo que não referes e que talvez não te fascine como a mim: a forma como os outros nos vêem e analisam. Não por pura curiosidade mas porque a distância entre a realidade portuguesa e as visões internas e externas dessa realidade dão-nos a dimensão das diferenças equivalentes quando lemos e escrevemos sobre as realidades que nos são exteriores.
Isto é, eu acho fascinante a forma como o autor descreve Portugal e Fernando Pessoa (julgo que é dele que se trata), mas parto do princípio que não são o país e o escritor que eu conheço, mas homónimos que o autor e filósofo suiço conheceu de outra forma.
"A verdade absoluta é uma falácia".
Respeito e compreendo as tuas reservas mas elas não interferem com a minha apreciação e com o prazer da leitura do romance. A ficção é uma viagem ao interior dos outros , primeiro, e ao interior de nós próprios, depois; esse o seu eterno fascínio. Como bem dizes, essa viagem tem que ser confortável ou então deve ser abandonada, há demasiados livros à nossa espera.
Vi entretanto o filme. Como alguém disse (julgo que no Público) este comboio não apita nada ... citando a nova geração: "boring".
O cruzamento de informações sobre uma cultura é fundamental para a sua caraterização. Aproximada, claro, mas a tender para uma certa objetividade. O que os outros pensam de nós é tão importante como aquilo que nós pensamos deles e cada um de si. Acontece que a visão plasmada no romance me apresenta uma realidade portuguesa demasiado esteriotipada. Pouco credível, registei eu a esse propósito. Opiniões falíveis de gente falível. Percebo o entusiasmo de alguns pela obra mas persisto no meu desencanto por um livro que, por duas vezes, tive dificuldade de ler até ao fim...
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