«Mas nós rodopiávamos indiferentes aos brilhos projectados sobre as nossas roupas, porque sabíamos que estávamos a celebrar um encontro no interior do império minuto, e havia vinte e um anos que na realidade não nos encontrávamos.»Lídia Jorge, A noite das mulheres cantoras (2011)
A
ânsia desmedida pelo sucesso instantâneo é uma realidade incontornável nos
nossos dias, fantasiada por uma multidão sempre crescente de potenciais
candidatos aos cumes olímpicos da fama e campos elísios da imortalidade.
Deitarem-se obscuros e levantarem-se famosos nos quatro cantos da terra. Eis a
grande apetência acalentada por todos. Custe o que custar e doa a quem doer. Entre
um momento e o outro, bastaria uma simples aparição fulgurante num qualquer
concurso mediático, norma geral patrocinado pela variante televisiva, para
atingir o resultado merecido, o triunfo repentino e irrefutável. Nestes desígnios
de idolatria galopante, o sonho nunca prevê o pesadelo. A glória da vitória
nunca admite a vanglória da derrota. Cada pretendente crê poder alcançar por
mérito próprio o rótulo de top model dos trapos, master chef dos
pratos ou super idol dos palcos. Tudo em inglês,
para que a ilusão do troféu conquistado adquira um relevo de magnitude planetária
e deixe todos de boca aberta e a salivar de inveja.
Lídia
Jorge centra-se nesse fenómeno mediático atual do reino do império minuto n'A noite das mulheres cantoras (2011),
onde nos relata a saga de cinco candidatas a estrelas cintilantes das canções pop-swing erigidas em português e com
passaporte garantido para o mundo. Fá-lo através de duas versões de dimensão
diferente, a oficial e a real, separadas por um intervalo de vinte e um anos de
lembranças adormecidas e de esquecimentos avivados. À mais recente e breve, dá
o nome de «O Conto de Solange» e situa-a numa noite perfeita do verão de 2009.
À mais antiga e longa, dá um ar de exame de consciência dos acontecimentos
vividos em 87-88 e reparte-a por vinte capítulos numerados e um epílogo
sintetizador de todos os fragmentos convocados pela intriga. Amor e ódio, riso
e choro, vida e morte, são ingredientes omnipresentes na ação que dá corpo à
fábula e alma ao texto.
Lisboa
é o palco central do drama e África o lateral das tragédias. Os ecos de histórias
antigos são frequentes. Prodígios duma escrita sem limites a que a autora há
muito nos habituou. As costas índicas dos murmúrios e atlânticas das saudades,
as cidades silvestres das amizades forjadas e das inimizades forçadas, as notícias
de ventos assobiando nas gruas do devir coletivo dum povo, são atualizados pela
memória da voz feminina que conta e reconta a história dum
bando de cinco mulheres cantoras, descendentes dum velho império perdido à
procura de novos horizontes globais a subjugar que possam combater sem tréguas
as sombras multisseculares dos fantasmas de antanho. Os aromas do chá
moçambicano do Monte Namúli no Gurué e do café angolano do Paralelo Dez no Cuanza-Sul
chegam-nos através das rotas de Joanesburgo e do Lobito com umas pitadas das
rotas americanas alternativas dos EUA e Canadá. Há ainda um pão com diamantes expressamente
preparado para as merendas futuras num cais de muitas chegadas e partidas, de
muitas debandadas e retornos, de escassas permanências e demasiadas ausências.
A janela da imaginação abre-se de par em par em cada página dum romance composto
com palavras musicais a soar a jazz com cadência perfumada de blues, requebros dissonantes
de ópera italiana rejeitada e um tudo ou nada de fado lusitano mal digerido a
deixar um travo amargo na língua.
O
protagonismo imediato recai nas cinco jovens que dão título à obra e mediato na
corte de fabricantes de êxito certo e seguro, gravado em vinil e consagrado em
cena. A fazer-lhes companhia silenciosa, encontramo-nos nós, leitores-espetadores
privilegiados dum reality show especial,
urdido com utopias quotidianas tecidas para deleite e proveito de todos aqueles
que queiram assistir à representação sempre renovada da comédia humana. O
teatro da vida é oferecido a quem o quiser observar no interior dum livro tradicional
feito de papel e letras a cheirar a tinta e pautas musicais invisíveis à espera
duma partitura inspirada. Então, poderemos idear a melodia mais ajustada para trautear
com as mulheres cantoras as lyrics avisadas da Canção Afortunada, aquela
que nos fala de alguém que tem tudo e não quer nada, ironia trágica quando
aplicada a um grupo que nada tem e tudo quer. Amor, morada, valor, fama e
tudo o mais que vier.
2 comentários:
Tenho sempre a veleidade de deixar um comentário, pois os inspirados textos de quem sabe o que escreve e tem prazer nisso me impelem a participar minimamente neste magnífico produto da arte de escrever. Cada vez mais o Prof. Artur se excede nas súmulas e, desta vez, deixei-me envolver com mais prazer ainda na música que ele compôs com as partituras que Lídia Jorge nos tem legado e nas quais ele mergulha para nos transmitir uma dança exótica de palavras, que traduzem em sintonia os livros maravilhosamente escritos pela autora.
Sobre o tema atual do livro, a vocação moderna é na realidade de um exibicionismo que traduz o facto das pessoas não saberem gostar de si mesmas, já que não é só o dinheiro que as impele mas principalmente a necessidade absoluta de se exporem publicamente. Neste caso, como cantoras que aspiram a tudo o que julgam não ter; em demasiados casos, vendendo a sua privacidade apenas pelo vil metal. Resta-me a certeza de que ainda há quem saiba respeitar-se a si próprio e ao seu próximo, pelo que consegue chegar a um cais e sentir que o vento assobia trazendo a notícia de amizades que vale a pena cultivar.
Obrigada pela criatividade e musicalidade deste belo texto que partilha connosco, Prof.
Lídia Jorge, na página inicial que antecede o romance, centra-se numa pensada e abandonada hipótese de aproveitar como epígrafe uma ideia retirada do livro de Nina Berbérova e tece, a esse propósito, alguns considerandos sobre as caraterísticas da narração de voz única própria dos escritos de memórias e da inexistência efetiva de verdadeiros monólogos. É que, de facto, o escritor está constantemente a dialogar com o leitor através da obra publicada. Neste sentido, «A noite das mulheres cantoras» continuará a passar a sua mensagem independentemente das interpretações críticas que possa suscitar. Os comentários laterais a estas recensões particulares seriam, assim, perfeitamente dispensáveis ou inúteis, porque feitas em segunda mão e sem a qualidade poética da primeira. Todavia, os leitores mais curiosos lá vão sentindo a vontade de confrontar com os seus companheiros de estrada as anotações recolhidas nas viagens encetadas pelos universos da escrita e o diálogo estabelece-se. E as conversas lá vão surgindo no espaço privilegiado criado pelo pátio de letras para proveito de todos. Obrigado, Tina, pela constância e luminosidade das partilhas e amabilidade dos palavras de apreço proferidas…
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