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AGENDA

08/04/12

Antonio Tabucchi, um requiem italiano entoado em português


«…hoje é um dia muito estranho para mim, estou a sonhar mas parece-me ser realidade e tenho de encontrar umas pessoas que só existem na minha lembrança.»
Antonio Tabucchi, Requiem – uma alucinação (1991)
Comprei o Requiem – uma alucinação (1991) de Antonio Tabucchi há 21 anos, com o firme propósito de o ler mal chegasse a casa. A circunstância de ter sido escrito diretamente em português por um italiano abrira-me ato contínuo o apetite de entrar no seu interior e de desvendar os seus mistérios mais secretos, aqueles que todas as obras de arte carregam consigo, à espera que os visitantes mais audazes tenham tanta habilidade para os deslindar quanta os seus arquitetos tiveram para os idear. A marcha imparável do tempo e os caprichos imponderáveis do dia-a-dia impediram-me de cumprir esse desejo até há uns dias atrás. A morte do autor anunciada nos mass media recordou-me que já estava em dívida para com ele há uma eternidade. O romance, composto em forma de missa de defuntos e ilustrado com um fragmento d’As tentações de Santo Antão de Hyeronimus Bosch, saiu enfim da prateleira dos livros esquecidos e das leituras adiadas e começou a desfiar o seu rosário de preces encomendadas às almas dos entes convocados pela fábula, em nove etapas, tantas quantas as partes eclesiásticas consagradas pelo género litúrgico que o enforma e inspira.

A obra até seria difícil de integrar satisfatoriamente numa categoria literária precisa e regularizada pelos cânones tradicionais, se não se desse o caso providencial de a instância narrativa, prevendo as dificuldades sentidas pelos leitores mais inexperientes nestas lides das letras, a ter colocado na órbita imediata do insólito, na fronteira dicotómica do real/imaginário, espaço psíquico em que o desvario caótico da alucinação e a fantasia episódica do sonho tomam conta do discurso e o transformam numa sonata de palavras pensadas com cadência musical e entoadas com precisão poética. A plausibilidade factual do relato fica garantida, dado que dentro e fora das páginas que o abrigam nada de sobrenatural aconteceu, apesar da sensação de estranheza com que ficamos ao percorrer a romaria do protagonista pelos trilhos das lembranças perdidas. Tudo se explica através da capacidade inata que todos nós temos de forjar mundos alternativos do faz-de-conta. Assim a saibamos alimentar e acarinhar.

A ação decorre num escaldante domingo de verão, o último do mês de julho dum qualquer ano do final da década de 80, quando Mário Soares presidia de maneira peculiar aos destinos da república. O Eu narrador e alter ego do autor achava-se numa quinta de Azeitão a ler à sombra duma amoreira O livro do desassossego de Bernardo Soares, quando é atacado pelos fantasmas da memória e se vê levado, por artes de berliques e berloques, para o centro de Lisboa. A tranquilidade bucólica é substituída pelo bulício urbano e a aventura dos diálogos da vida e da morte entra em palco, para as necessárias permutas de tempo e inadiáveis ajustes de contas com a história. Segue-se uma acabada galeria de tipos disposta à boa maneira vicentina da trilogia das barcas. A ribalta dos encontros fortuitos e dos planeados desloca-se, ao sabor da maré, para os cenários do cemitério dos Prazeres, de vários restaurantes citadinos, uma pensão de bairro, o museu das Janelas Verdes e um comboio da linha de Cascais, espaçados pelas calçadas, ruas, praças, largos e avenidas que os estreitam entre si.

A última etapa da peregrinação onírica dá-se em Alcântara com Fernando Pessoa. Os ecos d’O ano da Morte de Ricardo Reis (1984) de José Saramago são audíveis desde o início deste requiem novelesco. Só muda o relevo dado aos heterónimos evocados e a frequência dos encontros relatados. A conversa toma a forma dum simpósio e é travada em português e inglês, os dois idiomas que acompanharam o poeta ao longo da sua existência. Os assuntos abordados são medianamente banais e centram-se nos desassossegos verdadeiros e fingidos vividos pelos dois no ato da criação literária. Intersecionismos, futurismos e saudosismos são aflorados mas esbarram com as vanguardas pós-modernas desconhecidas pelo inventor da primeira modernidade. O jantar chega ao fim e com ele a matéria que alimentara até então o relato. Cada um dos convivas parte para o seu mundo sem direito a despedidas. O sonho-alucinação chegara ao fim. Lisboa fica para trás e Azeitão volta a perfilar-se no horizonte do sonhador-alucinado. Entre um espaço e outro, fica a homenagem de Tabucchi à cultura portuguesa e à língua que lhe dá voz e sentido. Prestemos-lhe nós também o preito que merece e mergulhemos nas águas profundas dos seus escritos, na dádiva dos silêncios partilhados e dos afetos confessados.

2 comentários:

Tina disse...

De Tabucchi li “Afirma Pereira”, que me revelou o conhecimento que o autor detinha da ditadura que se viveu em Portugal e na Europa, salientando a asfixia sócio-cultural que amordaçava o povo português, assim como os seus vizinhos espanhóis e italianos. É interessante verificar como a sua escrita nos transmite a inquietação de que Fernando Pessoa foi mestre, ao legar-nos o desassossego poético da sua obra fecunda, sinal do conhecimento profundo que tinha sobre a sua obra, de que acompanhou a tradução em Itália. E não só de F. Pessoa, pois Tabucchi conheceu a essência da alma portuguesa, fruto da paixão que tinha pelo país onde escolheu viver até falecer. E esta excelente súmula do Prof. Artur, como sempre escrita e transmitida com a mestria de quem tem o dom da palavra, confirma-nos esse conhecimento profundo da Tabucchi da cultura portuguesa, onde sobressai a obra pessoana. Em consequência, fica-nos o desassossego como companhia...
Obrigada, Prof!

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Quando o movimento migratório português se tem pautado ao longo dos séculos pela saída do país para o mundo, torna-se particularmente surpreendente ver um italiano instalar-se entre nós com caráter permanente, constituir família e escolher a cultura literária de Pessoa como fonte de inspiração para os seus percursos pela vida. Traçou-os exemplarmente em duas línguas, a materna que mamou na infância e a dos afetos que bebeu nas ruelas de Lisboa. O resultado está à vista e pode ser comprovado neste requiem de alucinações, o tal que coloca vivos e mortos no mesmo plano, para que entre si promovam a catarse purificadora de todas as inquietações dadoras de sentido à alma coletiva dum povo em particular ou da humanidade em geral…
Obrigado, Tina, pelas palavras simpáticas que mais uma vez ficaram gravadas neste espaço de leituras feitas e comentadas, estímulo basilar para dar maior visibilidade aos livros que vamos descobrindo neste pátio das letras.