«As paixões arrebatadas são como o vinho das melhores castas: primeiro alegram, depois embriagam, um dia azedam.»
Mário Zambujal, Dama de Espadas. Crónica dos loucos amantes (2010)
Se me fosse pedido para assinalar uma constante da personalidade do povo português, apontaria de pronto, sem grandes rebuços ou receios de errar, a capacidade que a sabedoria dos séculos lhe tem outorgado de caldear as conjunturas mais cabeludas da vida com uma boa e sonora gargalhada de autocrítica bem-disposta e retemperadora. Que o digam os escárnios e maldizeres das cantigas trovadorescas, as farsas e comédias do teatro vicentino, as ousadias satíricas de Bocage, as paródias naturalistas de Camilo, as ironias corrosivas de Eça, as caricaturas desenhadas do Bordalo e um punhado bem-medido ainda de apodos e motejos sarcásticos, semeados a torto e a direito, um pouco ao deus-dará e ao sabor da maré, pelas mais diversas formas de expressão artística que a modernidade contemporânea tem ensaiado. O anedotário popular tem andado à rédea solta por aí, sem medos nem temores das repressões mais aciduladas, a marcar as balizas culturais com que os sucessivos períodos de apogeu e decadência têm marcado de modo inconfundível o nosso percurso multissecular pela história.
O humor à portuguesa só terá um rival à sua altura no amor à portuguesa. Por vezes associam-se tacitamente e dão corpo às mais saborosas diatribes literárias compostas em verso e prosa a essa castiça imagem de marca de ser o homo lusitanus um pinga-amor inveterado, sempre à procura de novas paixões arrebatadas que lhe preencham os dias e deem verdadeiro sabor à vida. A fama vem de longe, extravasou fronteiras e tem alimentada a verve dos mais destacados vultos da república das letras. Mário Zambujal compara-as aos vinhos das melhores castas nas páginas da Dama de Espadas (2010), que alegram, embriagam e azedam, numa cadência tão fatal como o próprio destino dos homens de nascerem, viverem e morrerem. A sentença é proferida por uma personagem secundaríssima do romance e funciona um pouco como síntese de toda a fábula. Uma história de amores cruzados relatada pelo protagonista. Um entrecruzar de encontros e reencontros fortuitos que ficção tão bem sabe imitar da realidade. Um conjunto de cenas inesperadas e de comicidade permanente que a arte de contar do autor nos tem vindo a habituar de há três décadas a esta parte.
O argumento desta Crónica dos Loucos Amantes (assim reza o subtítulo) é fácil de traçar mas não enveredarei por essa via. Seria roubar aos potenciais leitores o prazer de o descobrirem por si sós, em primeiríssima instância. Limitar-me-ei a dizer que o herói central não deverá ser entendido como um caso perdido de marialvismo fadista irreversível, uma figura-tipo canónica que a tradição castiça tem registado profusamente ao longo dos tempos, tão ao agrado de uns e desagrado de outros. Filipe namora Rosália, apaixona-se por Eva e vive com Graziela. Simples. Puro equívoco. O baralho de cartas com que o intriga se vai tecendo elege a dama de espadas como agente máxima de todas as forças em jogo e põem-na a comandar os fios do destino que regem as relações humanas. O amor e a morte acabam por andar de mãos dadas, convertendo a quase novela passional em livro policial, com um arzinho canalha complementar de reportagem jornalística falhada. Mas como a viúva de serviço ao enredo assiste ao enterro do marido «elegantemente vestida de amarelo», todo a ato fúnebre se transmuda em pantomina burlesca e o melodrama de faca e alguidar em tragicomédia de rir e chorar por mais, como convém nestes tempos conturbados em que vivemos os nossas próprias misérias e imaginamos as alheias.
A boa disposição de Mário Zambujal é contagiante. Conhece-mo-la desde que nos brindou com essa hilariante Crónica dos Bons Malandros da palma da mão à ponta da unha (1980). Entrou de rompante pela porta grande da literatura e aí se tem mantido de pedra e cal como só ocorre com os grandes criadores. Mesmo daqueles que o fazem com palavras simples e sem artifícios discursivos na moda. A sobriedade compositiva ao serviço da escrita, bem à margem de subterfúgios estéticos e malabarismos estruturais. O público tem gostado e a crítica aplaudido. O segredo do sucesso editorial do romancista e dos romances está revelado.
1 comentário:
Mais uma belíssima recensão de Artur Henrique Ribeiro Gonçalves, escrita na linguagem simultaneamnete elegante e simples a que nos habituou. O último livro de Mário Zambujal, de quem confesso conhecer apenas as crónicas, ganha em importância com o enquadramento brilhante do enredo, que salienta a característica bem portuguesa de se rir das suas desgraças.
Referindo o mínimo indispensável para se entender que o enredo anda à volta de outra característica do português, a do pinga-amor, o livro torna-se apetecível quando se lembra a boa disposição do bom contador de estórias que é Mário Zambujal. Por mim, a dama de espadas consegue colorir a estória, pois foi personagem que sempre me fascinou desde criança... Até com a sua farpela me vesti para brincar o Carnaval na minha terra natal!
Obrigada, Artur, pela varinha de condão que possui e com a qual consegue transformar qualquer texto numa leitura com prazer!
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