«En ese tiempo remoto, yo era muy joven y vivía con mis abuelos en una quinta de paredes blancas de la calle Ocharán, en Miraflores. Estudiaba en San Marcos, Derecho, creo, resignado a ganarme más tarde la vida con una profesión liberal, aunque, en el fondo, me hubiera gustado más llegar a ser un escritor.»Mario Vargas Llosa, La tía Julia y el escribidor (1977)
Uma das imagens mais vivas que guardo da infância é a de observar a minha avó encostada à telefonia a ouvir a Simples-mente Maria patrocinada pelo teatro Tide, a história mirabolante e interminável da «coxinha», folhetim radiodifundido pelas ondas hertzianas já não sei se da Rádio Renascença se do Rádio Clube Português. Pouco importa. Lembro-me de a ver chorar, gritar, barafustar e interpelar as personagens à espera de uma resposta que naturalmente nunca lhe era dada. Com o meu avô as coisas passavam-se de modo mais calmo. Para além das partidas de hóquei em patins em que Portugal ainda ia ganhando títulos à Espanha, limitava-se a seguir muito tranquilamente os folhetins que O Século ou o Diário de Notícias publicavam regularmente em tiras destacáveis, que depois recortava e coligia metodicamente para memória futura. Passados esses instantes mágicos, gostaria de saber a forma como reagiriam às versões atualizadas das telenovelas transmitidas em doses industriais e sotaques variados pelos canais abertos da RTP, TVI ou SIC. As circunstâncias obrigam-me e ficar pelas meras conjeturas que até nem são muito difíceis de gizar.
Mario Vargas Llosa não nos descreve nas páginas d’ A tia Júlia e o escrevedor (1977) nenhuma cena semelhante à que presenciei nos meus tempos de menino e moço em período de férias estivais. Limita-se a recuar até essa já longínqua década de 50 (em que as radionovelas eram rainhas também na outra margem do Atlântico e competiam renhidamente pela liderança na guerra das audiências) ao encontro de um jovem peruano de 18 anos de idade, estudante universitário de direito, diretor de informação na Radio Panamericana, biscateiro coercivo de muitos mesteres e contista praticante nos escassos momentos livres que lhe restavam. Os amigos e familiares tratam-no por Marito ou Varguitas e os colegas por don Mario, mas nenhum deles por Llosita, diminutivo que nós, leitores, gostaríamos de ver averbado no papel, para lobrigarmos o autor convertido no protagonista e narrador do romance que temos entre mãos a revelar-nos, de viva voz, os primeiros passos que traçara nos meandros da escrita e do amor. As nossas suspeitas converter-se-iam em certezas, mas a ficção literária seria lamentavelmente traída pela biografia factual.
A urdidura deste relato das aprendizagens do herói reparte-se por dois eixos narrativos paralelos já anunciados no título: a tia Júlia e o escrevedor. Dois bolivianos de nascimento que os acidentes da vida colocaram em terras peruanas. Com a primeira, irmã de uma tia por afinidade, divorciada, à procura de marido e com 32 anos de idade, estabelecerá um complexo relacionamento sentimental, marcado pelo enamoramento dissimulado, casamento proibido e separação consentida. Com Pedro Camacho, o escriba de folhetins radiofónicos de maior sucesso em todo o espaço sul-americano, na casa dos 50 anos, erigirá uma ténue camaradagem profissional, própria de quem é obrigado a privar quotidianamente em locais contíguos de trabalho. Afastado o labéu do incesto do primeiro caso, sobram-nos as peripécias novelescas do segundo. Surpreendentes, espantosas e inconclusas todas elas, como convém ao género. Nos nove libretos esboçados, predominam as alusões a tragédias, dramas, parábolas e desventuras mil, a dar corpo a outros tantos rádio-teatros transmitidos simultaneamente ao longo do dia pela Rádio Central. O cansaço provocado pela criação em série leva o criador a confundir os episódios, a misturar os textos, a trocar as personagens, a baralhar os ouvintes. O recurso providencial a incêndios, terramotos e naufrágios catastróficos para reparar as barafundas criadas não é bem aceite pelos produtores que o internam por insanidade mental.
A tia Júlia e o escrevedor não é o primeiro nem o último romance de Mario Vargas Llosa. Nem pouco mais ou menos. É aquele em que se traça a história de alguém que deseja a todo o custo singrar nos universos da escrita, que se inspira nas histórias reais de vida para compor uma série de contos que um olhar crítico mais atento aconselha a remeter para o caixote do lixo. Conhecemos o argumento de seis deles. Ignoro se algum terá sido recuperado e publicado em livro. A obra do autor é vasta e as minhas leituras diminutas. Composto 33 anos antes de ter sido galardoado com o prémio Nobel da literatura, o relato autobiográfico do mestre dos sete ofícios acaba por ser uma premonição do próprio percurso do romancista. A arte de criar enredos está toda presente nas formas narrativas convocadas: a novela de aprendizagem, o folhetim radiofónico e o conto realista. A academia sueca apercebeu-se desse percurso ímpar e agiu em conformidade. O nosso aplauso e está tudo dito…
1 comentário:
Lembro-me de ter achado estranho o caso romântico entre tia e sobrinho, quando li o livro há mais de 20 anos. Não dei grande atenção ao facto do parentesco ser afinal por afinidade, para afastar a ideia de incesto por não haver consanguinidade, característica, aliás, dos nobres que dantes regiam os destinos do mundo... Mas este pormenor apimentou a estória e o conto ganhou em valor humano. O resto do enredo já se me tinha diluído no tempo, pelo que agradeço esta interessante recensão para me avivar a memória. Uma nova (re)leitura não estará, assim, posta de lado...
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