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AGENDA

01/02/10

Richard Zimler e a descoberta dos manuscritos do último cabalista de Lisboa

«Bruheem kol demuyay eloha! Blessed are all of God’s self-portraits!»
Richard Zimler, The Last Kabbalis of Lisbon (1996)
Uma das técnicas mais estafadas dos romances históricos consiste no encontro ocasional de um manuscrito de inestimável valor documental para a compreensão de uma época pretérita, perdido num qualquer recanto deste mundo, à espera de um feliz e providencial descobridor. Para aumentar a expectativa e aguçar o interesse pelo enredo, é também costume associar ao relato uma bem urdida teia policial, de modo a prender o leitor aos mistérios de um crime cometido à distância de séculos e cuja resolução é sabiamente retardada da primeira à última página postas à sua inteira disposição. Sempre achei esta prática assaz desconfortável. Sobretudo quando o autor real do livro se tenta confundir com o narrador concreto da efabulação, deixando-me incapaz de destrinçar a fronteira exacta entre o factual e o fictício.

Richard Zimler deixou-se apanhar por esse subterfúgio romântico e aplica-o sabiamente n’ O Último Cabalista de Lisboa (1996). Institui-se, de uma assentada, em achador, tradutor e editor oficial de um texto perdido ou esquecido nas brumas do tempo. Incrementa o efeito de verosimilhança com uma nota introdutória de autor e outra histórica, um bem documentado glossário de termos hebraicos utilizados e um inevitável prólogo esclarecedor dos contextos envolvidos. Só depois de cumprido este cerimonial canonizado pelo género é que oferece o produto final aos potenciais apreciadores de dramas alheios. O sucesso estava garantido. Do dia para a noite, converteu-se num bem logrado e celebrado best-seller internacional.

Deixados para trás os supostos aparatos críticos e folheados os três livros constitutivos da obra resgatada, somos conduzidos, num ápice, aos escritos de Berequias Zarco. Compostos ao longo de 23 anos, no exílio otomano de Constantinopla, a memória selectiva do protagonista acaba por se concentrar numa única semana, aquela que se tornou tristemente célebre pelo Massacre de Lisboa. O calendário gregoriano datará a efeméride sangrenta a 19 de Abril de 1506, um domingo de Páscoa, dia em que a cristandade celebrava ecumenicamente a Ressurreição do Senhor, a vitória da vida sobre a morte. A seca, a peste e a fome, que grassavam na capital do império, terá estado na origem do motim, levando o fanatismo religioso vigente na época a acossar, violentar e assassinar centenas de vítimas inocentes, sob o pretexto de judaizarem em segredo e de serem, por conseguinte, os únicos causadores dessas calamidades públicas. Tudo isto no tempo d’El-Rei D. Manuel I, o Venturoso, o Afortunado, o Grande...

O manuscrito quinhentista do último cabalista de Lisboa é também um livro que nos fala de outros livros. Secretos, proibidos, enigmáticos. De livros misteriosos, tecidos com linguagens cifradas, que só os iniciados na arte cabalística terão a capacidade de decifrar. Fala-nos de tráfico de livros. Sagrados para uns, malditos para outros. Fala-nos de uma Haggada muito especial. Não só por descrever os ritos cerimoniais dos festejos da Páscoa hebraica, ou passagem, mas por ter sido pintada por Abraão Zarco, tio e mestre do narrador. Por ter sido roubada da geniza, o local oculto onde fora posto a salvo de olhares indiscretos. Por estar ligada a um conjunto de homicídios em série que constituem o núcleo policial do romance. Especial, também, porque no final da investigação revelará o rosto do assassino do mentor espiritual de Berequias Zarco. Sem disfarces, sem máscaras, sem mistérios. Ironia trágica por excelência de toda a fábula.

Bem vistas as coisas e lidos os livros, Umberto Eco já imaginara um esquema afim n’ O Nome da Rosa (1980). Só que os labirintos da biblioteca da velha abadia beneditina dão lugar às caves e ruelas labirínticas da Pequena Jerusalém lisboeta. O ambiente medieval italiano é substituído pelo ambiente renascentista português. Aristóteles é sacrificado a Platão. Em entrevista à revista Ler de Novembro de 2009, Zimler confidencia que se alguma dos seus livros fosse transformado em filme por um «realizador da galáxia de Hollywood», gostaria de o confiar a Steven Spielberg. O Último Cabalista de Lisboa seria a escolha adequada. Quem sabe se, um dia destes, o sonho não se concretiza e não o veremos projectado num qualquer cinema perto de casa.

1 comentário:

Tina disse...

Do Richard Zimler, escritor que muito aprecio, não só pelos enredos bem engendrados, como também pelo estilo de romance histórico que adoptou, li "À Procura de Sana", "Goa ou o Guardião da Aurora" e "Os Anagramas de Varsóvia". Desde o primeiro que fiquei conquistada pelo seu estilo claro e lúcido de abordar os temas, mas até hoje não li "O Último Cabalista de Lisboa".
Esta descrição é fabulosa e, apesar de seguir as táticas de escrever um best-seller, como refere o Prof. Artur, é um acontecimento histórico marcante na vida da capital alfacinha, de cariz vincadamente social, que me interessa de todos os modos vir a explorar por mim mesma.
O artigo, como de costume escrito em linguagem bem envolvente e clara, despertou mais a minha curiosidade de saber pormenores sobre o massacre dos judeus em 1506 e a forma como uma multidão faminta e doente se transforma numa alcateia de autênticos lobos dementes. O ser humano a mostrar-nos a sua imperfeição, mais uma vez...
Obrigada, Prof., por mais este excelente artigo e por relembrar-me mais um título em lista de espera e que é de leitura obrigatória.