«Bruheem kol demuyay eloha! Blessed are all of God’s self-portraits!»Richard Zimler, The Last Kabbalis of Lisbon (1996)
Uma das técnicas mais estafadas dos romances históricos consiste no encontro ocasional de um manuscrito de inestimável valor documental para a compreensão de uma época pretérita, perdido num qualquer recanto deste mundo, à espera de um feliz e providencial descobridor. Para aumentar a expectativa e aguçar o interesse pelo enredo, é também costume associar ao relato uma bem urdida teia policial, de modo a prender o leitor aos mistérios de um crime cometido à distância de séculos e cuja resolução é sabiamente retardada da primeira à última página postas à sua inteira disposição. Sempre achei esta prática assaz desconfortável. Sobretudo quando o autor real do livro se tenta confundir com o narrador concreto da efabulação, deixando-me incapaz de destrinçar a fronteira exacta entre o factual e o fictício.
Richard Zimler deixou-se apanhar por esse subterfúgio romântico e aplica-o sabiamente n’ O Último Cabalista de Lisboa (1996). Institui-se, de uma assentada, em achador, tradutor e editor oficial de um texto perdido ou esquecido nas brumas do tempo. Incrementa o efeito de verosimilhança com uma nota introdutória de autor e outra histórica, um bem documentado glossário de termos hebraicos utilizados e um inevitável prólogo esclarecedor dos contextos envolvidos. Só depois de cumprido este cerimonial canonizado pelo género é que oferece o produto final aos potenciais apreciadores de dramas alheios. O sucesso estava garantido. Do dia para a noite, converteu-se num bem logrado e celebrado best-seller internacional.
Deixados para trás os supostos aparatos críticos e folheados os três livros constitutivos da obra resgatada, somos conduzidos, num ápice, aos escritos de Berequias Zarco. Compostos ao longo de 23 anos, no exílio otomano de Constantinopla, a memória selectiva do protagonista acaba por se concentrar numa única semana, aquela que se tornou tristemente célebre pelo Massacre de Lisboa. O calendário gregoriano datará a efeméride sangrenta a 19 de Abril de 1506, um domingo de Páscoa, dia em que a cristandade celebrava ecumenicamente a Ressurreição do Senhor, a vitória da vida sobre a morte. A seca, a peste e a fome, que grassavam na capital do império, terá estado na origem do motim, levando o fanatismo religioso vigente na época a acossar, violentar e assassinar centenas de vítimas inocentes, sob o pretexto de judaizarem em segredo e de serem, por conseguinte, os únicos causadores dessas calamidades públicas. Tudo isto no tempo d’El-Rei D. Manuel I, o Venturoso, o Afortunado, o Grande...
O manuscrito quinhentista do último cabalista de Lisboa é também um livro que nos fala de outros livros. Secretos, proibidos, enigmáticos. De livros misteriosos, tecidos com linguagens cifradas, que só os iniciados na arte cabalística terão a capacidade de decifrar. Fala-nos de tráfico de livros. Sagrados para uns, malditos para outros. Fala-nos de uma Haggada muito especial. Não só por descrever os ritos cerimoniais dos festejos da Páscoa hebraica, ou passagem, mas por ter sido pintada por Abraão Zarco, tio e mestre do narrador. Por ter sido roubada da geniza, o local oculto onde fora posto a salvo de olhares indiscretos. Por estar ligada a um conjunto de homicídios em série que constituem o núcleo policial do romance. Especial, também, porque no final da investigação revelará o rosto do assassino do mentor espiritual de Berequias Zarco. Sem disfarces, sem máscaras, sem mistérios. Ironia trágica por excelência de toda a fábula.
Bem vistas as coisas e lidos os livros, Umberto Eco já imaginara um esquema afim n’ O Nome da Rosa (1980). Só que os labirintos da biblioteca da velha abadia beneditina dão lugar às caves e ruelas labirínticas da Pequena Jerusalém lisboeta. O ambiente medieval italiano é substituído pelo ambiente renascentista português. Aristóteles é sacrificado a Platão. Em entrevista à revista Ler de Novembro de 2009, Zimler confidencia que se alguma dos seus livros fosse transformado em filme por um «realizador da galáxia de Hollywood», gostaria de o confiar a Steven Spielberg. O Último Cabalista de Lisboa seria a escolha adequada. Quem sabe se, um dia destes, o sonho não se concretiza e não o veremos projectado num qualquer cinema perto de casa.
1 comentário:
Do Richard Zimler, escritor que muito aprecio, não só pelos enredos bem engendrados, como também pelo estilo de romance histórico que adoptou, li "À Procura de Sana", "Goa ou o Guardião da Aurora" e "Os Anagramas de Varsóvia". Desde o primeiro que fiquei conquistada pelo seu estilo claro e lúcido de abordar os temas, mas até hoje não li "O Último Cabalista de Lisboa".
Esta descrição é fabulosa e, apesar de seguir as táticas de escrever um best-seller, como refere o Prof. Artur, é um acontecimento histórico marcante na vida da capital alfacinha, de cariz vincadamente social, que me interessa de todos os modos vir a explorar por mim mesma.
O artigo, como de costume escrito em linguagem bem envolvente e clara, despertou mais a minha curiosidade de saber pormenores sobre o massacre dos judeus em 1506 e a forma como uma multidão faminta e doente se transforma numa alcateia de autênticos lobos dementes. O ser humano a mostrar-nos a sua imperfeição, mais uma vez...
Obrigada, Prof., por mais este excelente artigo e por relembrar-me mais um título em lista de espera e que é de leitura obrigatória.
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