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AGENDA

11/05/14

Mario Vargas Llosa: as chantagens da aranhita e a herança do herói discreto


«Y, una vez más, como tantas en su vida, Felícito recordó las palabras de su padre antes de morir: “Nunca te dejes pisotear por nadie, hijo. Este consejo es la única herencia que vas a tener”. Le había hecho caso, nunca se había dejado pisotear.»
Mario Vargas Llosa, Él héroe discreto (2005)
Uma das marcas distintivas do homo sapiens é a de saber que um dia deixará de existir, que o nascimento precede a morte e que a vida é só um breve momento de passagem do tudo que é nada para o nada que é tudo. Ideia pouco cómoda para quem tem horror ao vazio e adora sonhar com o infinito. A idealização de seres imunes ao destino humano deve ser tão antiga como a própria capacidade de perspetivar o porvir. O homem criou os deuses à sua imagem e semelhança ainda que teime em afirmar exatamente o contrário. Projetou a superação da angústia certa do imanente ancorado na esperança duvidosa do transcendente. Em desespero de causa, arquitetou a hipótese de franquear as portas da eternidade através dos feitos realizados ao longo do trajeto e do seu registo na memória dos vindouros. O conceito é desenvolvido por Mario Vargas Llosa em cada uma das páginas d’ O herói discreto (2013). Fá-lo de modo insistente e peculiar. Na lenda helénica, Aquiles escolhe morrer jovem e lembrado de todos; no relato peruano, o protagonista prefere morrer velho e ignorado de todos. Formas de alcançar a glória que só os verdadeiros heróis são capazes de entender e atingir. 

As súmulas inscritas na contracapa apressam-se a identificar os cenários e agentes da intriga, os centrais e os periféricos, ligados entre si por uma fina teia de chantagens, todas elas sintetizadas por uma enigmática aranhita de cinco patas desenhada com grande relevo na capa da edição original. Refere-se às ameaças de extorsão urdidas contra Felícito Yanaqué, um pequeno empresário de Piura, mas pode aplicar-se também a Ismael Carrera, um bem sucedido empresário de Lima. A história paralela dos dois chama ao convívio dos leitores outras figuras novelescas fundamentais para a tessitura completa da trama. Algumas delas vindas doutros fragmentos de destinos inventados em forma de livro. Gente simples, anónima, gerada por homens e mulheres comuns, mortais como todos nós. O único traço de divindade partilhada por uns e outros reside na renovação da vida transmitida de pais para os filhos, e destes para netos e bisnetos, facto ciclicamente repetido, a transmitir uma ilusão efémera de eternidade. A capacidade de resistir às exigências, intimidações e ultimatos criminosos define o lídimo ato de heroísmo representado neste drama atual do real quotidiano. A ação decorre num palco latino-americano, mas as tábuas da ribalta podiam ser erguidas num qualquer teatro do mundo, que o efeito seria, mutatis mutandi, exatamente o mesmo, sem tirar nem pôr. 

Visto por este prisma específico, a tramoia que dá corpo à parábola até parece esgotar-se em poucas palavras. Dir-se-ia repartida por duas novelas de dimensão mediana, com outras menores dentro de si, até perfazer o tamanho canónico exigido por um romance. Falácias interpretativas geradas por leituras ingénuas ou precipitadas, alicerçadas em medições tradicionais a que o ato inventivo dos poetas dá pouca ou nenhuma atenção. Ao invés dos suposto facilitismos formais arrolados, o desenho seguido para caraterizar a sequência alternada de núcleos narrativos que compõem a fábula assenta numa complexa desconstrução discursiva, onde os ecos do fantástico puro e do realismo mágico criam uma cumplicidade assumida e persistente. Os diálogos proferidos pelos atores imaginados pela ficção saltam instantaneamente dum espaço-tempo para outro sem aviso prévio ou transtorno diegético de maior. O fico urdidor de enredos segue a corrente de pensamento duma determinada personagem como se se tratasse dum monólogo interior sonhado a que o leitor tem livre e imediato acesso. Flashes de vidas fingidas como se fossem verdadeiras. O real e o imaginário que habita em nós desde o princípio dos tempos plasmados nas folhas de papel impresso que temos entre mãos. 

A sequência de factos trazidos até nós acaba com o início duma visita a terras europeias. Os herdeiros dos tomadores dos bens materiais do novo mundo viajam à procura dos bens espirituais do velho mundo. Ironia trágica de quem só sublima a grandeza dos bens alheios. Para trás ficaram os heróis discretos do melodrama representado em terras americanas, no outro lado do globo, a meio hemisfério de distância e com um oceano inteiro de permeio. Reconciliados com a vida, transpõem um céu de nuvens e mergulham nos raios de sol que inundavam o interior do avião, passarola voadora para paraísos perdidos a recuperar.

2 comentários:

Tina disse...

A minha leitura do livro captou, acima de tudo, a coragem e a verticalidade de um homem simples (mais que um, afinal, pois na história cruzada do amigo velho que resolve casar-se com a empregada nova sobressai outro herói discreto, muito simples, que se coloca ao serviço do patrão por amizade, sem recear as consequências). A trama bem urdida, com diálogos que me surgiram com uma cadência bem clara, tornou-se o picante que deu vida ao romance. A própria viagem do casal de admiradores do velho mundo e suas riquezas culturais foi definida desde o início e consolidada no decorrer do enredo, transmitindo conhecimentos bem sólidos adquiridos anteriormente. Não achei o livro dos melhores de Llosa, mas agradou-me pela trama tão bem conseguida. Faltou-me um picante de sabor sul-americano para que o realismo mágico de Llosa me seduzisse no livro. Nem mesmo o amigo imaginário do rapaz conseguiu transmitir-me o fantástico de outros romances do autor.
A bagagem literária do Prof. Artur traz-me sempre enquadramentos literários bem interessantes, sobrepondo à leitura simples de um livro lições críticas que muito me aprazem! Agradeço mais uma vez a partilha e o prazer da leitura de uma brilhante recensão!

João Jales disse...

Um grande romance de um escritor que parece só saber escrever bons livros, poucos conseguiram escrever tanto com tanta qualidade.
Este é o herói que o escritor Llosa sonha poderá revolucionar a América do Sul, coisa que o político Llosa não conseguiu. Corajoso, discreto, perseverante, idealista mas pragmático, este é o Homem sobre o qual se edificará uma sociedade mais justa e mais livre, pensa ele.
O magistral jogo de cruzamento de histórias, diálogos e situações é inimitável, porque a narrativa é sempre límpida e clara.