«Y, una vez más, como tantas en su vida, Felícito recordó las palabras de su padre antes de morir: “Nunca te dejes pisotear por nadie, hijo. Este consejo es la única herencia que vas a tener”. Le había hecho caso, nunca se había dejado pisotear.»Mario Vargas Llosa, Él héroe discreto (2005)
Uma das marcas distintivas do homo sapiens é a de saber que um dia deixará de existir, que o nascimento precede a morte e que a vida é só um breve momento de passagem do tudo que é nada para o nada que é tudo. Ideia pouco cómoda para quem tem horror ao vazio e adora sonhar com o infinito. A idealização de seres imunes ao destino humano deve ser tão antiga como a própria capacidade de perspetivar o porvir. O homem criou os deuses à sua imagem e semelhança ainda que teime em afirmar exatamente o contrário. Projetou a superação da angústia certa do imanente ancorado na esperança duvidosa do transcendente. Em desespero de causa, arquitetou a hipótese de franquear as portas da eternidade através dos feitos realizados ao longo do trajeto e do seu registo na memória dos vindouros. O conceito é desenvolvido por Mario Vargas Llosa em cada uma das páginas d’ O herói discreto (2013). Fá-lo de modo insistente e peculiar. Na lenda helénica, Aquiles escolhe morrer jovem e lembrado de todos; no relato peruano, o protagonista prefere morrer velho e ignorado de todos. Formas de alcançar a glória que só os verdadeiros heróis são capazes de entender e atingir.
As súmulas inscritas na contracapa apressam-se a identificar os cenários e agentes da intriga, os centrais e os periféricos, ligados entre si por uma fina teia de chantagens, todas elas sintetizadas por uma enigmática aranhita de cinco patas desenhada com grande relevo na capa da edição original. Refere-se às ameaças de extorsão urdidas contra Felícito Yanaqué, um pequeno empresário de Piura, mas pode aplicar-se também a Ismael Carrera, um bem sucedido empresário de Lima. A história paralela dos dois chama ao convívio dos leitores outras figuras novelescas fundamentais para a tessitura completa da trama. Algumas delas vindas doutros fragmentos de destinos inventados em forma de livro. Gente simples, anónima, gerada por homens e mulheres comuns, mortais como todos nós. O único traço de divindade partilhada por uns e outros reside na renovação da vida transmitida de pais para os filhos, e destes para netos e bisnetos, facto ciclicamente repetido, a transmitir uma ilusão efémera de eternidade. A capacidade de resistir às exigências, intimidações e ultimatos criminosos define o lídimo ato de heroísmo representado neste drama atual do real quotidiano. A ação decorre num palco latino-americano, mas as tábuas da ribalta podiam ser erguidas num qualquer teatro do mundo, que o efeito seria, mutatis mutandi, exatamente o mesmo, sem tirar nem pôr.
Visto por este prisma específico, a tramoia que dá corpo à parábola até parece esgotar-se em poucas palavras. Dir-se-ia repartida por duas novelas de dimensão mediana, com outras menores dentro de si, até perfazer o tamanho canónico exigido por um romance. Falácias interpretativas geradas por leituras ingénuas ou precipitadas, alicerçadas em medições tradicionais a que o ato inventivo dos poetas dá pouca ou nenhuma atenção. Ao invés dos suposto facilitismos formais arrolados, o desenho seguido para caraterizar a sequência alternada de núcleos narrativos que compõem a fábula assenta numa complexa desconstrução discursiva, onde os ecos do fantástico puro e do realismo mágico criam uma cumplicidade assumida e persistente. Os diálogos proferidos pelos atores imaginados pela ficção saltam instantaneamente dum espaço-tempo para outro sem aviso prévio ou transtorno diegético de maior. O fico urdidor de enredos segue a corrente de pensamento duma determinada personagem como se se tratasse dum monólogo interior sonhado a que o leitor tem livre e imediato acesso. Flashes de vidas fingidas como se fossem verdadeiras. O real e o imaginário que habita em nós desde o princípio dos tempos plasmados nas folhas de papel impresso que temos entre mãos.
A sequência de factos trazidos até nós acaba com o início duma visita a terras europeias. Os herdeiros dos tomadores dos bens materiais do novo mundo viajam à procura dos bens espirituais do velho mundo. Ironia trágica de quem só sublima a grandeza dos bens alheios. Para trás ficaram os heróis discretos do melodrama representado em terras americanas, no outro lado do globo, a meio hemisfério de distância e com um oceano inteiro de permeio. Reconciliados com a vida, transpõem um céu de nuvens e mergulham nos raios de sol que inundavam o interior do avião, passarola voadora para paraísos perdidos a recuperar.
2 comentários:
A minha leitura do livro captou, acima de tudo, a coragem e a verticalidade de um homem simples (mais que um, afinal, pois na história cruzada do amigo velho que resolve casar-se com a empregada nova sobressai outro herói discreto, muito simples, que se coloca ao serviço do patrão por amizade, sem recear as consequências). A trama bem urdida, com diálogos que me surgiram com uma cadência bem clara, tornou-se o picante que deu vida ao romance. A própria viagem do casal de admiradores do velho mundo e suas riquezas culturais foi definida desde o início e consolidada no decorrer do enredo, transmitindo conhecimentos bem sólidos adquiridos anteriormente. Não achei o livro dos melhores de Llosa, mas agradou-me pela trama tão bem conseguida. Faltou-me um picante de sabor sul-americano para que o realismo mágico de Llosa me seduzisse no livro. Nem mesmo o amigo imaginário do rapaz conseguiu transmitir-me o fantástico de outros romances do autor.
A bagagem literária do Prof. Artur traz-me sempre enquadramentos literários bem interessantes, sobrepondo à leitura simples de um livro lições críticas que muito me aprazem! Agradeço mais uma vez a partilha e o prazer da leitura de uma brilhante recensão!
Um grande romance de um escritor que parece só saber escrever bons livros, poucos conseguiram escrever tanto com tanta qualidade.
Este é o herói que o escritor Llosa sonha poderá revolucionar a América do Sul, coisa que o político Llosa não conseguiu. Corajoso, discreto, perseverante, idealista mas pragmático, este é o Homem sobre o qual se edificará uma sociedade mais justa e mais livre, pensa ele.
O magistral jogo de cruzamento de histórias, diálogos e situações é inimitável, porque a narrativa é sempre límpida e clara.
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