«Sim, meu filho, o homem é pau para toda a colher, desde que nasce até que morre está sempre disposto a obedecer, mandam-no para ali, e ele vai, dizem-lhe que pare e ele para, ordenam-lhe que volte para trás, e ele recua, o homem, tanto na paz como na guerra, falando em termos gerais, é a melhor coisa que podia ter sucedido aos deuses.»José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo (1991)
Quando as leituras que fizemos no
passado nos exigem releituras no presente, isso significa terem os diálogos
travados em tempos idos com o autor permanecido inconclusos e abertos
a novas conversas de atualização dos sentidos encobertos das palavras. Ajuste
de contas das ideias feitas com as refeitas. As polémicas geradas em torno duma
obra perturbam, por vezes, o prazer do texto e das escritas que lhes deram
origem. As interpretações extremadas acabam por desviar a atenção do leitor e desvirtuar
os significados implícitos/explícitos das mensagens, de trocar as linhas e as
entrelinhas, lacunas que só uma revisitação efetuada no momento certo poderá
esclarecer ou colmatar.
No caso concreto de José Saramago e
d’O evangelho segundo Jesus Cristo
(1991), os fundamentalistas ortodoxos e políticos de pacotilha centraram-se em blasfémias
anacrónicas e impiedades bafientas alegadamente lesivas da matriz religiosa do
país, os críticos encartados mais exigentes deram-se conjuntamente as mãos e
acusaram o escritor de ter sido pouco ousado no ato criativo e de ter trocado o
maravilhoso cristão dos evangelhos canónicos pelo maravilhoso herege dos
evangelhos apócrifos. Sem entrar em extremismos exegético-literários, fiquei então
um pouco dececionado com o romancista, com a forma pouco realista como abordara
o tema e deixei ficar o romance a repousar até hoje. Vinte e um anos de
intervalo para arrumar as ideias e deixá-las atingir uma maioridade absoluta e
desejada.
Queria ver o natural onde havia o sobrenatural.
Topar o imanente onde achava o transcendente. Agora, contento-me em testemunhar
o realismo mágico onde a alegoria assentou arraiais. A presença do insólito no
relato acaba por acentuar ainda mais a profunda humanidade de Jesus. Facto
singular que a vontade dos homens, perante a grandeza exemplar da sua conduta
na vida, deificou com o decorrer dos séculos, confundindo a natureza mortal do
filho de Maria e José com a natureza imortal de Jeová. O retratado, em
contrapartida, prescinde da dignidade divina outorgada pelo senhor
todo-poderoso criador de todas as coisas e escolhe a paternidade dum simples
carpinteiro galileu desconhecido criador de meros objetos de uso quotidiano. O
livre arbítrio terreno é chamado à colação e derrota sem ponto de retorno a
predestinação celestial.
O evangelho de Jesus Cristo segundo José Saramago equaciona
as fontes que o devir histórico nos legou e reescreve, com toda a minúcia
permitida pela ficção, a biografia do filho do homem que recusou ser filho de
deus. Efetua uma interpretação atenta dos mitos fundadores do monoteísmo
cristão que estiveram na origem da moderna civilização ocidental e dá-lhe uma dimensão
alternativa. Recupera o nome de Judas duma traição inexistente, dá a possibilidade
a Madalena de amar e ser amada, permite a Maria e José a liberdade de
constituir uma verdadeira família e devolve ao mentor involuntário duma religião
ancorada no sacrifício e martírio do calvário o direito à mortalidade, o tal
que os deuses sempre invejaram e os discípulos lhe roubaram para proveito
próprio. As coordenadas maniqueístas do bem e do mal são alteradas, apenas para
que a infabilidade dos dogmas seja questionada. É que as mãos que compuseram as
versões escritas do sagrado são em tudo idênticas àquelas que produziram as
profanas.
No ano em que José Saramago completaria o seu
nonagésimo aniversário, a sua presença continua mais viva do que nunca entre
nós. As incursões que façamos ao universo romanesco por si gizado serão
sempre premiadas com novas e renovadas descobertas, com fartas e variadas pistas
de leituras, com múltiplas e incontáveis formas de olhar o mundo real e
imaginário que nos rodeia e nos define. Apanágio muito raro só alcançado por alguns,
como será o caso dos inventores inatos dos heróis da imaginação, com os quais
acabam por se confundir e fundir. Aqueles que desde os tempos imemoriais da criação
artística vão dando sentido pleno à imortalidade, ao privilégio de viverem em
espírito na memória coletiva dos povos.
3 comentários:
Grande livro, grande autor.
Valeram os 21 anos de intervalo. Brilhante revisitação e reinterpretação!
Maria de Fátima
Li "O evangelho segundo Jesus Cristo" em Janeiro de 1992, perfeitamente alheia às discussões mais ou menos apaixonadas e/ou tendenciosas que se desenrolavam à minha volta, já que Saramago era um escritor que me fascinava com o realismo mágico da sua pena.
Em criança frequentei com as minhas irmãs a catequese, perfeitamente crente nas teses cristãs de um Jesus filho de Deus, que nascera de Maria e José sem mácula nem pecado, mas muito temente da ira divina com que nos ameaçavam nas missas. Com o passar dos anos, muito vi no comportamento cristão e a beatitude perdeu aos meus olhos a sua capa. Por isso, a leitura de "O evangelho segundo Jesus Cristo" não chocou a minha educação cristã, pois já tinha capacidade para separar as águas e admirar a criatividade fantástica de Saramago ao escrever a vida Jesus como um simples ser humano, dotado do poder de decidir do seu próprio destino. A investigação histórica subjacente ofereceu-me factos que desconhecia por completo, como a maneira dos romanos crucificarem os criminosos, ou simples opositores às suas leis imperiais, com as cruzes em tamanho pequeno para poupar madeira, pelo que quebravam as pernas aos desgraçados, numa humilhação adicional - atitudes horrorosas que, infelizmente, os homens ainda não perderam nas guerras que travam nos nossos dias.
Esta magnífica recensão do Prof. Artur, uma ótima lição de crítica literária, desperta-me a vontade de reler e redescobrir a alegoria desenvolvida com mestria por Saramago neste romance, como tenho feito ultimamente com outros autores portugueses. E sei que vou experimentar a mesma voluptuosidade de há 20 anos, deleitando-me com a ousadia de um escritor que seguiu sempre a sua criatividade sem se deixar intimidar pelos demais.
"Ainda havia nele um resto de vida quando sentiu que uma esponja embebida em água e vinagre lhe roçava os lábios..." Afinal, a opção pelo livre arbítrio é um direito e o vinagre alheio não nos deve influenciar...
Obrigada, Prof., por mais esta magnífica partilha!
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