«La tranquilicé explicándole que el mexicano era un poeta y la recepcionista contestó que su novio, el peruano, también lo era y no se comportaba así. Como un zombi. No quise contradecirla. Menos aún cuando dijo, mirándome las uñas, que la poesía no daba nada. Tenía razón, en él planeta de los eunucos felices y los zombis, la poesía no daba nada.»Roberto Bolaño, La pista de hielo (1993)
Roberto Bolaño tornou-se nos tempos conturbados em que vivemos num dos escritores de culto com mais adeptos em todos os quadrantes geográficos aonde os seus livros já chegaram. O sucesso deste autor de referência obrigatória e presença imperiosa em todas as bibliotecas públicas e privadas tem sido feita tanto a partir da versão original castelhana com ressaibos chileno-mexicanos, como das traduzidas para um número crescente de línguas. Situação a todos os títulos invulgar, dado aplicar-se a um criador que só teve de morrer para se tornar célebre à escala global, sem para esse efeito ter entrado no clube restrito dos fabricantes encartados de fantasias gratuitas, dos vendedores de sonhos baratos convertidos em best-sellers de leitura superficial e inócua, expressamente feita para consumir e deitar fora.
Encetei o regresso inevitável à magia do inventor do infrarrealismo literário através d’A pista de gelo (1993), a primeira obra em prosa que deu à estampa com a forma de romance e um dos derradeiros títulos a ser divulgado entre nós. O prazer do reencontro foi imediato. Mais uma vez o fascínio repetiu-se. A vontade firme de novos encontros saiu reforçada. Assim o baú do efabulador continue a abrir-se e a revelar-nos postumamente os textos que razões desconhecidas mantiveram inéditos até à presente data. Assim o fundo dessa arca de tesouros escondidos atinja uma dimensão abissal, para que os nossos convívios com o universo imagético da escrita aconteçam e os diálogos com o seu arquiteto se refaçam ciclicamente.
Os temas, assuntos e motivos desta obra inaugural serão retomados exaustivamente na produção novelesca editada em datas posteriores. Contudo, a hipotética suspeita de iteração abusiva não se instala no horizonte de receção dos leitores. Tudo se passa à boa maneira barroca da arte da fuga, em que o caráter contrapontista, polifónico e imitativo das melodias em confronto se associam para criar a sensação de unidade e diversidade da própria existência humana, ancorada na perseguição e evasão duma ideia central e plasmada indiferentemente numa pauta de música ou numa página de livro. As harmonias alcançadas são o produto catalisador da própria variação. Por outras palavras, todas as histórias estão dentro doutras histórias, as pretéritas e as vindouras, num contínuo narrativo de fragmentos soltos unidos pela mestria da composição.
Exige o senso comum regulador das boas práticas da resenha literária que a partilha das leituras feitas nunca revele o mistério das leituras projetadas. O desvendar de enigmas é um processo estético que só funciona em toda a sua plenitude mágica se for efetuado em primeiríssima mão. O argumento possível desta pista de gelo encontra-se registado na contracapa do exemplar consultado. Refere tratar-se de três versões distintas dum mesmo crime perpetrado numa localidade anónima da costa espanhola. Avança com outros pormenores que um pudor pessoal me impede de avançar. Quem quiser saber mais dos enredos revelados pela narrativa que se fique pela capa ou viaje pelo interior do livro. Hipótese que defendo vivamente. A experiência da descoberta vale o esforço.
Os fragmentos de vida vivida pelos poetas de ferro que dão corpo à fábula espelham, em grande medida, o percurso de vida vivida pelo poeta-narrador que os retratou, em episódios feitos e contrafeitos ao sabor da pena que os traçou. O autor e as personagens confundem-se entre si, visto fazerem parte duma mesma verdade, a real e a imaginada. Andarilhos, marginais, exilados, boémios, famintos. Pícaros desajustados nesta era de pós-modernidade consumada no rescaldo de guerras frias travadas dos dois lados do muro da vergonha também apelidado cortina de ferro. Protagonismos indesejados de acontecimentos recentes convocados à colação do leitor para memória futura. Razão tem Roberto Bolaño para defender, através do testemunho oportuno duma personagem, que se o perdido está perdido, o melhor mesmo é olhar em frente. A frase com que A pista de gelo termina tem um outro alinhamento de palavras. A ideia que a enforma permanece todavia inalterada, com toda a força premonitória de aviso ou prevenção que o nosso engenho e arte lhe consiga outorgar…
3 comentários:
Mais uma excelente súmula que nos transmite curiosidade pela metáfora que o livro contém, não transcrevendo a fábula mas aguçando a vontade de conhecer, lendo a obra, a história sobre o crime. E talvez optar pela sua própria interpretação, diferente das três versões narradas... A "arte da fuga" foi exemplarmente aplicada aqui e, mais uma vez, o Prof. leva-nos por um labirinto de palavras mágicas e criativas que nos dão a certeza de que valerá a pena ler o livro. Porque a produção novelesca atual, mesmo nos casos mais premiados, trazem na maior parte das vezes desilusões enormes. Afinal, o dom da palavra não é um prémio para todos!
Para aguçar o apetite para a leitura sem desvendar os mistérios do romance, apetece-me acrescentar que a intriga conta ainda com uma insinuante patinadora, sem a qual a pista de gelo não faria qualquer sentido e o anunciado crime teria sido imaginado de modo distinto. Tudo isto para agradecer as palavras sempre simpáticas da Tina e para lhe dizer que as palavras mágicas e criativas pertencem ao Bolaño, que as usava como poucos para deleite de todos nós...
Sou um leitor assíduo e um incondicional admirador de Roberto Bolano desde que, no Verão de 2008, li Os Detectives Selvagens. Só depois de terminar soube que o livro tinha dez anos, o autor (um chileno emigrado em Espanha) tinha morrido e que eram mais referidos como suas influências os nomes de Perec, Calvino, Kafka e Borges do que os "dois escritores machos da América Latina, Llosa e Marques", como ele gostava de chamar aos dois autores que mais dizia admirar(?).
Não vou falar do livro, coisa que o Artur fez muito melhor do que eu faria, mas realçar o carácter verdadeiramente lúdico e divertido deste romance policial- isto é, embora pense que 2666 e Detectives Selvagens são mesmo o melhor que ele escreveu, preferiria ter lido este livro primeiro.
Não se assustem com as estórias subterrâneas que se acumulam, a informação que chega a parecer exagerada e caótica, os pesadelos, os permanentes rascunhos de contos não acabados - a prosa milagrosa de Roberto fará com que, mais cedo ou mais tarde, tudo faça sentido e encaixe sempre no seu lugar (ou quase sempre,a vida é mesmo assim).
E gozem cada página, um dia vão descobrir que só há nove romances (um incompleto e outro assim-assim), dois livros de contos e cinco livros de poesia dele para ler - e vão achar, como eu, que é muito pouco...
Enviar um comentário