«Adriana pousou o livro e daí a pouco esquecia-o. Não apreciava muito os livros. Como a irmã, a mãe e a tia, adorava a música, mas os livros achava-os maçadores. Para contar uma história enchiam-se páginas e páginas e, afinal, todas as histórias se podem dizer em poucas palavras.»
José Saramago, Claraboia (2011)
Descobri José Saramago por acaso há
cerca de três décadas atrás, numa altura em que não conhecia o autor nem de
nome. Apaixonei-me pela capa dum livro seu que tinha uma imagem fabulosa e só
me dei conta do disparate cometido quando cheguei a casa. Deixara-me vencer pela
aparência dum olhar e impulso dum instante. Reproduzia ela o pormenor bíblico da
construção da torre de Babel, pintado nos frescos medievais da abadia francesa
de Saint-Savin-sur-Gartempe. Alguns meses depois, resolvi arrumar em definitivo
o incidente e lançar-me duma vez por todas à leitura sempre adiada do romance
ou deixá-lo tranquilamente sossegado a encher-se de pó. A surpresa não podia
ser maior. Li-o de fio-a-pavio, numa única noite e sem interrupções. Na manhã
seguinte, fui à procura de todos os textos que já publicara e comecei a
devorá-los da primeira à última notação gráfica. O prazer da descoberta foi menos
intenso, mas vaticinou-me que o melhor ainda estava para vir nos anos
seguintes. Assim foi. A paixão pela escrita desse desenhador de palavras até
então desconhecido desabrochou e mantém-se bem viva até hoje. Tudo a partir do Memorial do convento (1982), um
relato épico centrado na era dourada do magnânimo e que transformou radicalmente
em mim a forma de viver a literatura. Curiosas
histórias que os livros nos oferecem, assim de imprevisto, sem pedirem licença
a ninguém.
Uma
outra capa que me voltou a sensibilizar para um romance de Saramago é mais
recente e a linguagem de script que a encorpa obedeceu a uma trajetória
distinta. A ansiedade de desvendar os segredos dum inédito há muito extraviado foi
mais forte do que a magia provocada por uma gravura que se abria sedutoramente
para o âmago da fábula. A representação duma fresta ou óculo aberto para
permitir a passagem do ar ou claridade a um edifício de papel revestido de
palavras e a pairar sobre o casario da cidade recortada sobre um fundo azul
celeste. Imagem feliz para dar visibilidade antecipada a uma Claraboia (2011)
especial, traçada por um obscuro Honório, pseudónimo que os editores modernos
substituíram pelo ortónimo do seu criador absoluto. Apesar de ter sido finalizada
em 1953 e ficado esquecida até às vésperas da publicação, já com caráter
póstumo, é deveras surpreendente que encontremos na sua urdidura a magia duma
escrita que só seria reconhecida e consagrada a uma distância tão alargada no
tempo. A problemática da existência humana tomada em todas as suas dimensões, a
equação das relações erigidas entre homens e mulheres nas suas pequenas e
grandes cumplicidades, a determinação possível das fronteiras balizadoras do real
e do imaginado, do bem e do mal, do amor e do ódio, da verdade e da mentira, da
vida e da morte, do tudo e do nada.
Essa
abertura estratégica recortada no prédio ficcionado permite-nos espreitar para
o seu interior sem ser vistos, observar discretamente o destino entrecruzado da
meia dúzia de famílias que o habitam, protagonistas romanescos decalcados dos passeantes
anónimos com que nos cruzamos no nosso caminhar pelo dia-a-dia. Vê-los a todos
dum modo peculiar, como heróis e heroínas dum vasto retábulo com seis painéis e
muitas intrigas por contar. Gente simples com sonhos de liberdade. Regresso
inesperado aos anos cinquenta, a um bairro popular de Lisboa, descritos em cima
do acontecimento, aqueles em que uma chamada telefónica custava cinco tostões e
se podia fazer em casa duma vizinha, em que se ouvia rádio aos serões e se
ignorava a existência da televisão, em que os jornais falavam da guerra da
Indochina e se fazia tábua rasa das colónias portuguesas que, à época, se
mantinham adormecidas, numa tranquilidade secular, sem o menor sobressalto de
conflitos futuros. Anos em que as pessoas ainda sentiam prazer em conversar
umas com as outras sobre os mais diversos assuntos, ainda achavam importante discutir
os enredos das histórias de paixões ardentes escritas nas páginas dum livro ou gravadas
nas faixas dum disco, ainda encontravam argumentos plausíveis para construir
sistemas filosóficos pessoais de dimensão universal. Retalhos de vida plasmados
num romance que por pouco não ficava encerrado numa qualquer gaveta de obras rejeitadas
pela república das letras. Uma claraboia transformada numa janela aberta de par
em par, para que as poeiras de décadas de esquecimento fiquem impedidas de ofuscar
a luminosidade retratada na tela. Ironia inesperada do devir histórico, feita
de teias urdidas e cerzidas, de dramas lidos e vividos, de palavras perdidas e
achadas…
1 comentário:
A minha descoberta de Saramago foi feita também através do "Memorial do convento", uma prenda de uma explicanda que, como eu, adorava ler e escrever. A magia da escrita de Saramago, como que pulsando ao ritmo da minha respiração, traçou um enredo muito bem urdido, que me conquistou desde as primeiras linhas: a história da construção do convento de Mafra e as investigações sobre a possibilidade de se conseguir aquilo com que a humanidade sempre sonhou: voar. As relações profundas entre homens/mulheres foram um tema que sempre fizeram parte do realismo mágico de Saramago, pelo que não me admira que a Clarabóia, que ainda não li, revele mais uma vez a sua pena criativa e mágica e me traga de novo asas quando mergulhar na sua leitura.
Obrigada, Prof., por mais esta brilhante recensão, que me fez decidir pelo livro que me vai acompanhar nas férias que já batem à porta. Bem hajas pela partilha!
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