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AGENDA

09/01/12

Catherine Clément, as histórias com história da Senhora

«Béatriz était leur Dame. Elle était devenue leur Señora. […] “Ha-Gueveret”, criaient nos frères en hébreu. La Dame. C’est à Salonique qu’on l’appela ainsi pour la première fois.»
Catherine Clément, La Señora (1992)
A escrita foi inventada pelos sumérios há cerca de 5300 anos. A literatura deve ter surgido pouco mais ou menos por essa altura. Desde então até hoje, o homem terá criado qualquer coisa como cem milhões de milhões de originais que a voragem do tempo lá foi fazendo chegar até nós. Cifra prodigiosa que nem o leitor mais aplicado logrará atingir nas suas viagens contínuas pelos livros que contam histórias fingidas ou verdadeiras. Estima-se que nenhum deles consiga ultrapassar uma escassa parcela de 0,01% desse número prodigioso. Desconheço o modo como os entendidos na matéria chegaram a esses resultados de cálculo probabilístico. Fica-se todavia com a ideia geral da grandeza da criatividade humana e da pequeneza que todos nós temos de o entender na sua universalidade.

Há obras que percorremos uma única vez ao longo dos nossos trajetos empenhados pelas letras feitas de palavras portadoras de sentido. A qualidade relativa de cada uma delas é irrelevante para explicar essa singularidade. O desejo de achar outras associações de sons geradoras de prazer estético limita-nos os passos e obriga-nos a saltar de página em página até descobrir o tal poema-ficção da nossa vida. Tarefa inglória, porque todos os dias surgem títulos novos que nem teremos ocasião de conhecer pelo nome. De quando em quando, deixamo-nos de ilusões e lá nos lembramos dum texto que em tempos nos encheu as medidas e temos vontade de visitar de novo. A Senhora (1992), de Catherine Clément, cabe nesta categoria de livros repescados num passado recente, sem direito, ainda, a serem postos na prateleira dos clássicos imortalizados por gerações sucessivas de ledores. Nunca o saberemos.

O mais conhecido relato da autora francesa está centrado na mais ilustre humanista portuguesa que a centúria de quinhentos produziu. Beatriz de Luna se chamou na pia batismal (1510) e Mendes após o casamento católico (1528). Dona Grácia (Hannah) Nassi se passou a nomear por vontade própria após a fuga à Inquisição de Lisboa (1536) e posterior substituição da qualidade de conversa forçada pela de judia convicta em Ferrara (1550). Ganhou o epíteto de A Senhora em Salónica (1553/4), que manteve pela vida fora até ao ano da morte ocorrida na Terra Santa (1569), onde era tida como uma digna rainha da Palestina. A história desta mulher invulgar é também a história dum mundo em mudança. Aquele que trocou as alegadas trevas medievais pelas proclamadas luzes renascentistas. As que levaram a civilização ocidental aos quatros cantos da terra e deram origem à globalização. Época de grandes transformações culturais nas artes, filosofia e ciências, de grandes convulsões sociais na economia, política e religião. Aquela que opôs papistas e protestantes, expulsou marranos e mouriscos, promoveu a limpeza de sangue, acendeu fogueiras e espalhou o terror e a guerra um pouco por toda a parte. No velho continente, a tolerância e convívio dos três monoteísmos abrâmicos foi sentido de modo diferente nos diversos países que o compunham, com particular complacência no império otomano, local de refúgio final da comunidade sefardita ibérica tutelada pela viúva do banqueiro Francisco Mendes / Semah Benveniste, a dominadora ou Ha-Gueveret, como também era apelidada.

A crónica das errâncias da protetora do povo hebreu na diáspora, mecenas de artistas e intelectuais no exílio, patrocinadora da Bíblia de Ferrara e das Consolações das tribulações de Israel de Samuel Usque, íntima do médico João Rodrigues de Castel-Branco, mais conhecido por Amato Lusitano, partidária do messias David Rubeni e do rabi Isaac Louria, é-nos transmitida através do ponto de vista do sobrinho e genro João Micas / Dom Josef Nassi, feito cavaleiro pelo imperador Carlos V e Duque de Naxos pelo sultão Selim II. É a esta figura incontornável da primeira modernidade europeia, amigo íntimo de Maximiano II de Áustria e inimigo figadal de Filipe II de Espanha, que Catherine Clément confia o fio condutor de todas as histórias com história de Dona Grácia Nassi, a Senhora, escrita em homenagem de todas as Beatriz da dispersão de Israel. Tributo literário que a judia de Lisboa merecia, graça que todos nós ficamos a dever à judia de França. Assim o afirma no derradeiro parágrafo do romance, assim se identifica com a protagonista da efabulação, assim se evoca o exemplo duma vida que a ortodoxia católica tentou apagar e que a ficção romanesca recuperou e trouxe ao nosso convívio. Que a leitura se faça refaça então e que aproveite.

1 comentário:

Tina disse...

Um texto sucinto, equilibrado e iluminado, de tal forma que o leitor se sente imediatamente integrado no contexto em que decorre a ação. É um elogio entusiasta da vida desta Beatriz judia, que teve a audácia de fugir de Lisboa na época nefasta da Inquisição e se tornou a "mais ilustre humanista portuguesa" do renascentismo, bem complementado pelo enquadramento cultural e histórico que salienta a inclinação pelas luzes do conhecimento universal.
Prof, obrigada por mais esta valiosa partilha! Quem me dera ter a sorte de ler a milésima parte da estimativa referida mas que fosse de narrações desta qualidade...