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AGENDA

03/06/10

João Aguiar, marketing, merchandising & media do priorado do cifrão

«Já agora ficas a saber: ele é pago para escrever produtos por encomenda, a que chamamos "livros" por simples facilidade de expressão.»
João Aguiar, O Priorado do Cifrão (2008)
Nunca li o The Da Vinci Code de Dan Brown. A minha aversão pelos best-sellers é antiga e persistente. Limitei-me a ver o filme. Sem grande entusiasmo. As frases bombásticas que acompanham as edições impressas dessas obras provocam-me uma urticária incurável. Já o disse várias vezes e volto a repeti-lo. João Aguiar parece partilhar a mesma opinião. Só que o faz de forma bem mais criativa nas páginas d’ O Priorado do Cifrão (2008), paródia bem humorada aos designados «romances teológicos» tão em voga hoje em dia, onde a «cultura de massas» impera inexoravelmente.

Os capítulos iniciais da ficção portuguesa conduzem-nos, abruptamente, ao ambiente peculiar do «mundo dos livros» de grande tiragem, todo ele feito por encomenda e à escala planetária. Centra-se no modelo americano referido e transforma-o no «The Caravaggio Papers» de «Ben Browning». A «teoria da conspiração», típica do género, desenvolve-se à sombra do misterioso «Priorado do Simão». As principais coordenadas do pastiche são evidentes. Depois, a trama narrativa envereda por outros percursos discursivos bem mais sinuosos do que os do mero fabrico eficiente de êxitos literários. O sucesso editorial é inegável, mas passageiro. A descoberta incessante de códigos/papéis perdidos, a proliferação de infalíveis fórmulas de deus, a exploração metódica desse filão esotérico, mais não são do que subterfúgios romanescos para denunciar algo de muito mais «assustador»: o aproveitamento da «crise em que a nossa sociedade está mergulhada até à ponta das orelhas…». O usufruto continuado da instabilidade criada, esse, está na mão de quem detém o poder, de quem manipula a informação, de quem engendra os cifrões.

Para entender melhor a mensagem de João Aguiar, haverá que ler alguns dos títulos anteriormente publicados. Sobretudo os últimos. Limitar-me-ei ao «Enfim, o Paraíso» (1990), conto de antecipação política mais tarde ampliado no romance O Jardim das Delícias (2005). A acção nesses relatos situava-se num futuro ainda distante, utópico, numa Federação Europeia já concretizada, mas moribunda. A retratada neste terceiro acto do drama representa-se num palco global da actualidade, perante a indiferença dos espectadores. Essa a lição do texto. O alerta. A ironia trágica por excelência deste nosso mundo contemporâneo.

NOTA:
Publiquei esta pequena crónica no jornal electrónico Contemporâneo em janeiro de 2009, pouco depois do romance ter sido publicado. Mal imaginava então que seria o último. Transcrevo-o aqui tal e qual, sem acrescentar uma palavra às 300 originais que me foram encomendadas.

2 comentários:

Liliana disse...

Oportunissimo post Artur, obrigada.

Tina disse...

A Encomendação das Almas, julgo que infelizmente o único livro que li de João Aguiar, já criticava as regras desta aldeia global que pretende subjugar todos às mesmas linhas de comportamento físico e mental.
Não me surpreende que o escritor, falecido no ano passado tão precocemente se tivermos em conta o que ele teria para nos oferecer, tenha prosseguido na senda da crítica mordaz do mundo global em que vivemos, desta vez debruçando-se sobre os best sellers, que seguem todos as mesmas linhas básicas de exploração esotérica tão em voga. Confesso que li O Código da Vinci e Anjos e Demónios, de Dan Brown, com muito agrado, porque os enredos são bem construídos e as referências a locais que bem conheci os tenham tornado mais atrativos ainda. Além de levantarem a permanente dúvida existencial que nos persegue no dia a dia...
Mais uma súmula que me leva a registar mais um livro de leitura obrigatória, não só pela escrita lúcida e viva de João Aguiar, como também pelo fato do escritor remar contra a maré dominante, quiçá consequência dessa mesma lucidez.
Obrigada pela partilha, Prof.!