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AGENDA

18/12/09

José Saramago e as desconcertantes errâncias de caim pelo mundo

«A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele.»
José Saramago, Caim (2009)
O Caim (2009) de José Saramago não é uma obra maior. Os tripulantes da «barcarola voadora» e da «jangada de pedra», os «levantados do chão» e assediados do «cerco de lisboa», os sumidos no «ano da morte» aí estão a impedi-lo. Estará talvez ao nível de um «salomão», o tal elefante quinhentista em trânsito terrestre entre Lisboa e Viena de Áustria. Também não é, decididamente, uma obra menor. O estilo inconfundível do autor nunca o permitiria. Está lá todo. Cada vez mais pujante. Só que nos conta histórias muito antigas, sabidas e ressabidas, desgastadas pelo uso e abuso que têm sido alvo no decorrer dos dois / três últimos milénios.

Polémicas à parte, o romance mais não faz do que revisitar o Livro dos Livros e tentar reduzir ao absurdo a lógica ancestral ali coligida à luz dos conhecimentos actualmente postos à nossa disposição. A ideia de um deus cruel e vingativo, engendrado pelo imaginário colectivo dos inventores do monoteísmo, é dissecada pela instância narrativa, como se tivesse sido criada pelas mentes sofisticadas dos nossos dias. O resultado afigura-se-nos um pouco frustrante.
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A gesta ficcionada de Caim quase se confunde com as fortunas e adversidades dos andarilhos marginais que a inventiva castelhana dos séculos dourados pôs à disposição de todos nós. Oriundo de uma linhagem caída na desgraça (Adão e Eva), este protótipo bíblico de pícaro malfadado desenvolve um processo de ciúmes pelo irmão mais novo (Abel) e mata-o. Marcado na testa com o estigma do «senhor», é obrigado a encetar uma ininterrupta peregrinação pelo mundo, o que lhe proporcionará uma longa e penosa aprendizagem das tragédias da vida, ou, se preferirmos, das «intermitências da morte». Transformado por força de circunstâncias mal apuradas num viajante involuntário do tempo, de deslocar consigo o presente da sua existência, «ora para a frente ora para trás», o ilustre proscrito é levado a testemunhar alguns dos episódios mais sangrentos do Génesis e do Êxodo, que nunca se coíbe de comentar e criticar.

Protegido uma ou outra vez com oportunos nomes de empréstimo (Abel e Noah) e entregue a providenciais actividades laborais de subsistência (agricultor, pisador de barro, porteiro, ajudante de alveitar, rastreador, cuidador de burros), dedica-se à ingrata tarefa de recolher a «prova irrefutável da profunda maldade do senhor». Adão e Eva são expulsos do «jardim do éden» só por terem querido saber distinguir o «bem» do «mal», votando todos os descendentes ao anátema do «pecado original». Caim tira a vida a Abel, mas em contrapartida dá um filho a Noah, engravidando-lhe a mulher Lilith. Consegue salvar a vida de Isaac, impedindo Abraão de o sacrificar ao altíssimo, mas não obtém o perdão do «senhor, também conhecido como deus».

A imprudência divina de criar o homem e a mulher à sua imagem e semelhança terá sido o maior «erro» da sua eterna presença. Depois, intentou emendar essa distracção, massacrando a torto e a direito «culpados» e «inocentes», para grande espanto de Caim. Em desespero de causa, tenta afogar toda a população terrestre, incumbindo Noé de fundar uma nova era na história da humanidade e dos restantes seres viventes. Caim não permitirá que o «erro» se volte a repetir. Enfrenta o «senhor» e derrota-o em todas as frentes, conseguindo o estatuto de herói que os anti-heróis pícaros clássicos nunca lograram obter. O exemplo do amo celestial tinha-lhe servido de suprema e eficientíssima lição. É a morte que dá verdadeiramente sentido à vida.

José Saramago terá cometido a ingenuidade de ler a Bíblia em sentido próprio, de a ter reduzido a um mero rosário de relatos fabulosos que o mais elementar bom senso remete para o universo dos sentidos figurados. A própria Igreja aconselha esta fuga em frente. Mas, ao fazê-lo, a versão do romancista acaba por ser tão válida como qualquer outra. A qualidade literária tem muito pouco a ver com o sagrado. A efabulação termina com a frase lapidar: «A história acabou, não haverá nada mais que contar». Conhecendo o autor como conhecemos, duvidamos que essa decisão seja de fiar. Bem vistas as coisas, os leitores só têm a lucrar com uma tal eventualidade.

3 comentários:

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

18 de junho de 2010
«De Deus e da morte não se tem contado senão histórias, e esta é mais uma delas...»

«Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.»

José Saramago, «As intermitências da morte»

Tina disse...

Escrito no dia em que a morte se abraçou ao homem, no dia 16 de Junho de 2010, este comentário atinge-me de forma expressiva, lembrando-me a eterna dúvida que acompanhará a maior parte de nós. Assim como penso ter acompanhado Saramago, que tanto escreveu sobre "deus", para mim e para muitos de nós uma criação do homem, pelo medo que temos do desconhecido após a morte... ou pela esperança em algo melhor do que o mundo em que vivemos.

Ainda não tinha lido a crítica sobre Caim, assim como ainda não li este último livro de Saramago, o que é estranho dado que corria sempre a ler os seus livros, na expectativa de me reencontrar com a magia de uma obra como os citados eufemisticamente nesta preciosa análise. Não deixarei de o fazer, antes pelo contrário, pois a referência aos exageros relatados por Saramago ainda o torna mais apetecível. Há que desafiar a vida e os homens e Saramago foi um mestre na arte de ser frontal e expor tranquilamente as suas ideias.

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

«A história acabou, não haverá nada mais que contar»

Certeira premonição...