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AGENDA

04/12/09

Armando Silva Carvalho & Maria Velho da Costa, o livro do meio ou das ligações perigosas

«Ensaiemos pois, em silêncio, o percurso do nosso dueto, a ouvir o Scarlati.»
Armando Silva Carvalho & Maria Velho da Costa, O Livro do Meio (2006)
Sempre ouvi dizer que Lisboa é uma grande aldeia, onde todos se conhecem ou fingem ignorar, onde uns e outros cultivam, sem excepção, os seus amores/ódios de estimação. Mais os segundos do que os primeiros, como convém. Os profissionais da escrita não fogem a esta regra de ouro do escárnio e maldizer nacionais. A diferença é que o fazem com uma inequívoca e inexcedível mestria. E nós, pobres mortais, sedentos de palavras bonitas (mesmo quando dizem coisas feias), até aplaudimos. Há séculos que o fazemos impunemente.

Armando Silva Carvalho e Maria Velho da Costa recorreram a esse velho hábito que a tradição canonizou. Fizeram uma incursão combinada à meninice, cartearam-se durante alguns meses e alinharam um «romance epistolar», a que chamaram O Livro do Meio (2006). Aquele que se situa no cruzamento de duas escritas estripadas de todo o tipo de preconceito, concebidas ao jeito de uma «marquise de Merteuil» e de um «vicomte de Valmont», personagens novelescas criadas por Pierre de Laclos nas Liaisons dangereuses (1782); ou à imagem e semelhança da experiência que a autora tivera na composição das Novas Cartas Portuguesas (1972), integrada no grupo das «Três Marias»; ou do autor na tradução da Correspondência a três (2006), que Rilke, Pasternak e Tsvétaïeva terão partilhado no verão de 1926. Títulos frequentemente citados e glosados no decorrer dos diálogos travados à distância e em fragmentos repartidos.

As fontes de inspiração seguidas pelo «dueto» terá servido de perfeito álibi explicativo de muitas das liberdades tomadas nessas memórias feitas de realidades pretéritas, actualizadas ao sabor do momento, de cumplicidades pressentidas, mas nunca reveladas na sua totalidade. O leitor é confrontado com um discurso entremeado de claros subentendidos e de aparentes evidências que terá de enfrentar do lado de «fora do Livro», com toda a perícia que consiga agilizar para desenlear os fios da meada. A tarefa é árdua, mas os resultados deveras compensatórios. É que a fruição plena do prazer da leitura não tem preço.

As referências às obras de um e de outro são constantes. As apreciações que suscitaram aos críticos encartados do trabalho alheio ou de fazedores de ideias feitas são o pretexto para os mais inspirados jogos de disfarces encenados nas cartas. Os remoques satíricos dirigidos a todos aqueles que alguma vez se lhes tenham atravessado no caminho são impiedosos. É que «um puritano da boca é uma criatura perigosa». Os nomes são substituídos por siglas anódinas e epítetos sonantes, mas a força das descrições fornece-nos a chave das charadas sem grande esforço de descodificação. Que o digam a «Académica», a «Mnemónica» ou a «Embaixatriz».

Resumir essa longa conversa travada entre dois amigos de longa data, esse «coloquialismo intimista», seria uma traição que nenhum deles mereceria. A menos que nos limitemos a dizer que se trata de um livro que fala de arte e artistas, de música e compositores, de cinema e cineastas, de livros e autores, que fala, inevitavelmente, da vida e morte das paixões. É um livro que pretende promover uma «perigosa colaboração de classes», aquelas que cada um dos signatários das missivas representou nas origens. Ela a emergir de uma média burguesia urbana do Bairro Azul e Janelas Verdes, a saltitar entre a «Casa dos Gritos» e o «Palácio das Madres» ou das «Escravas do Sagrado Coração de Jesus»; ele a fugir de um proletariado rural remediado de uma aldeia cinzenta do litoral oeste, a saltitar entre a «Casa dos Choros» e a «Escola do Paraíso» ou «externato pobre para meninos ricos».

No final do percurso retrospectivo às «Casas da Infância», o cansaço dos caminhantes é notório. A escrita ressente-se da penosa caminhada. Armando Silva Carvalho despede-se entoando o «canto do viandante e das sombras». Maria Velho da Costa convocando o «sangue, coalhado e vivo». Pela parte que me toca de mero «leitor», de «anjo ou demónio desconhecido», com muita saudade de os ter visto acenar o lenço pela última vez, de os ter visto partir e de não continuar a desfrutar do prazer da sua presença. Arrebatadora, inebriante, sublime. Como sempre.

4 comentários:

Isabel Castanheira disse...

Caro Artur:

Correspondendo ao seu amável convite entrei no Espaço de Memória e do Pátio de Letras. Encontrei uma cuidada e inteligente análise a O Livro do Meio, que li com todo agrado e apreciei.
Esse livro faz parte das minhas páginas caldenses, pelas muitas referencias às Caldas. E o que a mim me espanta é que leio aquelas descrições, como "história" e muito dificilmente me integro naquele ambiente e naquelas vivências que em parte também são minhas.
Lerei sempre as suas palavras se mas der a ler.
Sabe que descobri agora que há um avião que se chama Bordalo Pinheiro? Tenho que fazer um post intitulado Bordalo nas nuvens; haverá melhor sítio para se estar?
Receba uma abraço
Isabel Castanheira

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

O fascínio da leitura do livro do meio está mesmo nas palavras convocadas para compor a escrita, na forma como os dois entrelaçam as coordenadas das ligações perigosas para nos retratarem uma época. Não me integro nos ambientes focados no relato, porque não faço parte da ficção, mas identifico-os com um grande à vontade com muitos deles. Os vivenciados pelos habitantes da casa dos gritos e da casa dos choros quando nos convidam a visitar outras casas e outros casos que nós tão bem conhecemos.

Casa da Ginja disse...

Devo ter lido o livro, segundo os registos do meu "inventário", nos finais de 2006. Adquiri-o logo que saiu, influenciado por conhecer minimamente os seus autores e por saber que ASC é oriundo do Olho Marinho, aldeia do concelho de Óbidos, situada a meio caminho entre a sede do concelho e a, agora, cidade piscatória de Peniche.
Correspondeu às expectativas de quem lê movido apenas pelo prazer que lhe dá a leitura, aliado, no caso presente, à procura de situações, descrições, lugares e gentes conhecidas.
O tom coloquial da narrativa, as referências a locais bem nossos conhecidos - "...lembro-me da Zaira, esse antro de mulheres ociosas ..." -, a actualidade política, desportiva, criminal ("Gisberta"), os tempos de infância - "... eu era nessa idade um ajudante de padre ...", a descrição da ida aos mercados, a referência ao professor primário " filho de um padre que deixou de o ser" (foi este professor que avaliou a minha sapiência no exame da 4ª. classe), deliciaram-me.
Na leitura fiz algumas anotações que serviram, agora, para a "pesca" necessária a este pequeno arremedo de comentário, feito apenas com o propósito de corresponder ao desafio do Artur, companheiro de há mais de 40 anos, num tempo em que o tempo corria bem mais devagar.
Uma última referência (pág. 210) a esse tempo: "Devo dizer aqui que o meu pai era um pobre diabo de esquerda. Acabou por ser aconselhado a sair da Junta de Freguesia pelo nobre da região, um tal D. José de Siqueira (São Martinho), dono da Quinta do Furadouro: faltava-lhe dedicação ao regime." Conheci o nobre referido e trabalhei para um seu cunhado.
Um abraço
Orlando Sousa Santos

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

O conhecimento mais ou menos abrangente de gentes, situações e lugares convidados a prestar testemunho no livro do meio são, decerto, importantes para despertar o tal prazer da leitura. Depois, a cumplicidade urdida pelos dois obreiros do romance fornecem aos leitores muitos outro ingredientes de rara beleza estética, que só os grandes artistas conseguem atingir para plena fruição dos leitores.