Regresso com uma história (e uma tulipa)
Estão a findar os dias de sol e calor. Pelo menos é isso que manda o calendário e, de certo modo, as noites já são frescas, o dia desponta mais tarde, e a cidade está invadida por gente que se dirige para o trabalho indiferente aos cartazes (qual deles o pior) que apelam ao voto dos portugueses.
Eu comprometi-me com a Liliana a ir dando notícia de livros interessantes, que valham a pena, de livros que façam a diferença no meio dos quase cinquenta mil que se editam ou reeditam anualmente. Comprometi-me, mesmo, a passar pelos best-sellers (bons ou maus) sem dizer água vai. Enfim, fui promovido a ajudante honorário da livreira, o género de cavalheiro que está ao balcão, na cavaqueira, e que sugere ao leitor de passagem um livro que provavelmente escaparia a este. Isto, caros leitores, é mais um privilégio da idade do que um reconhecimento do meu eventual bom gosto. Mas hoje, não recomendo livro algum (ou melhor, recomendo, sem mais, um John dos Passos acabado de sair: Paralelo 42, o primeiro volume de uma trilogia de altíssima qualidade, escrita trepidante de um intelectual comprometido com o seu tempo e o seu mundo, como alguma vez poderei contar) porque vos quero contar uma história de livros. Aliás duas.
Hoje mesmo, nesta cidade que só por ironia se pode chamar “invicta” (foi conquistada por todos os exércitos que a atacaram, à excepção do miguelista, durante as guerras liberais.) fui por uns livros constantes do catálogo de um dos bons alfarrabistas portuenses. Quando me dispunha a pagar, dei-me conta que não trazia dinheiro suficiente, pelo que tive de procurar uma caixa multibanco. A primeira a que me cheguei estava em greve: não há nada para ninguém era o recado que depois de farta trabalheira com o cartão, os códigos, a indicação da quantia pretendida, nos surgia. Lá tive de procurar outra caixa e, para que esta peregrinação por uns morabitinos que brevemente deixariam de me pertencer valesse a pena, regressei por um caminho diferente. Onde havia um outro alfarrabista. Bem, já que aí estás... e pimba em três minutos contemplava assombrado um livro bonito da Imprensa Nacional com um título tentador: “cinco imagens para Nemésio”. E dentro, oh espanto! Cinco serigrafias (de uma série de 250) lindas de morrer e assinadas pelo Nikias Skapinakis. O Preço (em letra gorda mas já com um desconto de amigo) atirava para os 250€, cinquentinhas por peça. Convenhamos que, pese embora a crise, aquilo era de borla, enfim, era barato, muito barato. Duvido que conseguisse uma pelos 250 do total, quanto mais as cinco. A livreira, era uma livreira, benza-a Deus!, simpática e velha conhecida, disparou “leve e paga quando puder” que eu, já lhe explicara que levantara a massa que trazia com o cartão, pelo que não podia, hoje, ir por mais dinheiro. A coisa, dita assim, é como ditar azeite sobre a chama. Eu, que já estava perdido, nem protestei, meti o livro debaixo da asa e ala que se faz tarde.
Cheguei ao primeiro alfarrabista, paguei e dispus-me a dois dedos de conversa.
Então não é que olho para o chão e dou com um “Tableau de Paris”, dois volumes sumptuosos, mil e quinhentas ilustrações, folhas com cantos dourados enfim uma perdição. Isto quanto vale?, perguntei apenas para fazer conversa. Quando me responderam “cem euros” ia caindo. Se este era o “Tableau...” de Edmond Texier, editado em 1852 e mencionado na Chapitre a 1582 € e noutras instâncias a preços que vão desde 499 a 1500 € então algo de milagroso se passava por ali.
Era exactamente o Texier. Num estado bom que só não era muito bom porque as capas tinham alguns picos em baixo, do uso e da velhice. Por dentro uma beleza. Avisei lealmente o meu amigo alfarrabista que me parecia que o livro devia ser muito mais valioso. “cem euros e nem mais um cêntimo”, retorquiu-me. Se é assim...
É claro que desembolsei 350 euros. Mas também é verdade que, se quisesse vender agora mesmo as minhas duas compras obteria, já o confirmei, três ou quatro vezes mais. Todavia isso não sucederá pela razão simples, mas obscura para os filisteus, que estou louco por ver as serigrafias na parede do escritório enquanto irei lendo com vagar e volúpia o tableau
*na gravura: uma das serigrafias mencionadas.
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