«Faltam cinco minutos para as onze horas. Paulo de Carvalho canta “E depois do adeus”.»José Saramago, A noite (1979)
Sempre que o nome de José Saramago é chamado à colação, convocamos de imediato à memória um conjunto de textos compostos no seio do modo narrativo atualizado em forma de romance. Harold Bloom lá terá as suas razões quando afirma, a páginas tantas do que é ser Génio (2002), tratar-se dum «maravilhoso romancista […] um dos últimos titãs de um género em vias de extinção»*. O Memorial do convento (1982) surge à cabeça de todas as obras que o catapultariam para as ribaltas da aldeia global e lhe granjeariam, a seu tempo, os prémios Camões (1995) e Nobel (1998) da literatura. Todavia, o seu contributo para o engrandecimento das letras portuguesas passa ainda pelos trilhos do conto, da crónica, do ensaio, da poesia e do teatro. Em todos os géneros deu cartas e ditou normas indeléveis.
Fixar-me-ei n’ A noite (1979), uma imitação dramática de vidas vividas há precisamente 40 anos, em 1974, quando a noite de 24 de abril deu lugar à madrugada do 25 de abril. Trata-se duma peça em dois atos, com ação centrada na redação dum jornal da capital, composta a pedido de Luzia Maria Martins e levadas à cena em maio de 1979 pelo Grupo de Teatro de Campolide. O assunto é fácil de imaginar e não requer leituras de entrelinhas. A liberdade de expressão então conquistada dispensa-nos desse exercício quotidiano praticado em 48 anos de meias verdades e de mentiras integrais. Mencionam-se censuras, medos, boatos. Referem-se exames prévios, joguinhos de regime, notícias falsas. Fala-se nas apostas do totobola, discute-se a composição da primeira página, questiona-se a objetividade da informação. Ouve-se o matraquear das máquinas de escrever, dos aparelhos de telex, das rotativas de tipografia. Pela rádio, ressoa a voz de Paulo de Carvalho a cantar a canção vencedora do último festival da RTP e o ranger forte das botas na terra que antecede a voz de José Afonso a proclamar uma terra da fraternidade chamada Grândola, senhas duma revolução tantas vezes ensaiada e outras tantas malograda. Rumores, murmúrios, dúvidas sobre o sucesso da sublevação, sobre a orientação política dos vencedores.
A representação mimética da morte dum regímen moribundo em cenário jornalístico não será, por certo, o melhor registo artístico dessa antemanhã de mudanças que caraterizam o nosso devir histórico recente. O próprio José Saramago se encarregou de relatar com palavras escritas «um dos mais extraordinários monumentos literários com que fica a contar a nossa ficção pós-25 de Abril». A opinião é de Luís Pacheco e encontra-se documentada na contracapa do Levantado do chão (1980) a que se refere. Uma verdadeira epopeia em prosa do povo alentejano, composta em forma de saga, mas que exibe em pano de fundo a realidade vivida no país, entre os derradeiros estertores da monarquia e os primeiros vagidos da democracia. Dolorosos uns e outros, como costuma ocorrer nestas ocasiões particularmente conturbadas, sobretudo para a arraia-miúda que assiste nos bastidores aos eventos evocados. Acrescentemos-lhe ainda a «Cadeira», o conto inaugural do Objeto quase (1977), a tal que provocara a queda do barão de Santa Comba e abreviaria o caminho em direção aos novos tempos.
O modo dramático não se dá muito bem com a página de papel para comunicar. Prefere fazê-lo num espaço cénico e com palavras ditas por atores de carne e osso como nós. Só assim a ilusão do real atinge o clímax. Os responsáveis do Teatro da Trindade perceberam esta exigência da arte de Tália e voltaram a dar voz aos profissionais da informação recriados pela ficção. Entre novembro de 2013 e janeiro de 2014, mais de 7000 espetadores terão assistido à representação. Número exíguo de participantes que os condicionalismos empresariais impediram de ampliar. As conversas enquadradas por um 16 de março pretérito e um primeiro de maio vindouro, pontuadas por uma entrevista prevista com o chefe de governo e entremeadas com alusões irónicas aos chefes dos movimentos de libertação colonial, poderão voltar a ser travadas um sem-número de vezes por um sem-número de leitores. A vantagem dos livros reside, justamente, nessa possibilidade de assistir aos espetáculos da vida sem ter de sair de casa. Façamo-lo uma vez mais nós também. O assunto da peça continua atual. A ação iniciada nessa noite de abril ainda está em aberto. A luta entre a direita e a esquerda permanece ativa. O pano de cena erguido dentro e fora do palco da história ainda está por descer. O final feliz por que todos sonhámos ainda está por surgir. Aproveitemos o momento e sigamos em frente. Tempus regit actum, tempus urgit, tempus fugit...
(*) Harold Bloom, Génio. Os 100 autores mais criativos da história da literatura. Lisboa: Temas & Debates; Ideias, 2014, p. 574.
2 comentários:
Fui ver a peça no dia da estreia. Gostei bastante.
Já não há finais felizes... Somos é um povo que sempre se agarrou à esperança... Ou não tivéssemos vivido debaixo de jugo durante quase cinquenta anos. E viva Portugal e o 25 de Abril sempre!
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