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AGENDA

02/12/13

Valter Hugo Mãe: pinceladas de desumanização na história da irmã gémea da criança bonsai

«Venho para te cortar os dedos em moedas pequenas e com elas pagar ao coração o mal que me fizeste. O pior amor é este, o que já é feito de ódio também…»
Valter Hugo Mãe, A desumanização (2013)
É assombroso o número de autores e obras que ouvimos referir todos os dias, com os melhores elogios que a língua falada permite tecer, sem termos passado os olhos por nenhuma linha de palavras por si desenhadas com caracteres tipográficos. Se, como dizem, o ato de ler está em crise nos dias que correm, a capacidade de escrever, em contrapartida, está mais forte do que nunca. Prolifera como os cogumelos silvestres em terreno húmido. Valter Hugo Maia surgiu no meu quadro de referências como uma dica de leitura, proferida à beira-mar e em tempo de praia, no cenário duma conversa despreocupada a cheirar a protetor solar e com a boca lambuzada duma bola-de-berlim. O tal que tinha uma queda muito peculiar para manejar a prosa poética e cujo nome deveria grafar-se com iniciais minúsculas. Ao que parece, porque a abolição das maiúsculas tornaria mais célere o registo e decifração das mensagens. Opiniões. Declino seguir tais experimentalismos já gastos pelo uso, até porque não a vi concretizada uma só vez no volume d’A desumanização (2013), o romance que tenho entre mãos e me abriu as portas para os universos narrativos do escritor luso-angolano, com créditos ainda firmados como vocalista num grupo musical e outras habilidades mais nas artes protegidas pelas musas. 

Alguém que trata a literatura por tu há longa data confiou-me sentir uma profunda deceção pelo rumo tomado pelos novos talentos da ficção portuguesa, pela tendência de só se identificarem de facto com a matriz cultural do país que os viu nascer ou crescer por mero acaso ou descuido. O desenraizamento seria total e programático. Acredito na autenticidade do aviso que me foi transmitido em tom de lamento sentido sem, todavia, o poder confirmar ou refutar integralmente. O hábito arreigado de me manter fiel aos vultos já consagrados nestas lides das letras que contam histórias tem-me afastado do convívio dos que ocupam o horizonte ainda longínquo duma canonização futura. A minha entrada neste universo inventivo do terceiro milénio, materializada no relato em apreço, veio dar certa razão ao diagnóstico traçado em jeito de boca provocatória, de boutade divertida, ou de sarcasmo dorido. Coincidências ou talvez não. Os dados estão lançados na pesquisa e os resultados à vista. A incursão noutros instâncias narrativas destas gerações das derradeiras pós-modernidades terá de esperar por novas oportunidades. 

A verdade é que o relato se faz no idioma materno, que aprendeu a modelar com sotaque africano e europeu ao longo de quatro décadas e picos de aprendizagens existenciais, mas com localização na remota Islândia, país de vulcões semiadormecidos e de géiseres bem-acordados, de charnecas geladas, de montanhas cobertas de neve, de fiordes talhados pela força telúrica dos glaciares em perpétuo movimento. Podia situar-se na Cochinchina, na Patagónia ou nas paragens recônditas das Terras-do-Nunca, que o efeito de exótico pretendido estaria sempre garantido. Fala-se na Ilha-do-Gelo do Atlântico Norte com o mesmo à-vontade como se falaria da Terra-do-Fogo do Atlântico Sul ou de qualquer outro Finisterræ sem localização precisa num mapa real de terras concretas ou idealizadas. Liberdade criativa perfeitamente legítima na república das letras que, aliás, não põe em causa a qualidade intrínseca à fábula e da tessitura verbal com que é urdida. Um longo monólogo interior da protagonista, completado com um ou outro breve diálogo exterior travado com os deuteragonistas. Memória dolorosa composta com uma mão-cheia de imagens reunidas numa infindável metáfora continuada de duzentas e tantas páginas. Histórias de amor-morte e de paixão-ódio, dicotomias escolhidas para definir a humanidade dos seres pensantes ou a desumanização da sua passagem pela vida. Recordações amargas da irmã gémea da menina bonsai, aquela que foi tragada pela boca de deus antes de tempo, aquela que ao partir deixou o mundo divido por metade ao seu redor, aquela que foi plantada para que germinasse de novo e não germinou. 

Depois de concluídos os relatos da menos morta das crianças, o artífice das histórias fingidas conta-nos outra verdadeira. Pessoal. Fá-lo numa nota de autor dirigida aos leitores. Quando nasceu já o seu irmão Casimiro havia morrido. Durante toda a infância imaginou-o à sua imagem. Especular. Sabia-o deitado na terra como se fosse uma semente. E achou que dele brotaria um dia um fruto. Podia ter sido um pêssego, mas não foi. Dessa árvore concebida até à idade adulta surgiu um livro. Este de que se fala. Pretexto para fabricar uma declaração de amor extensível a um país de rara sensibilidade e beleza estética. Esquisita. As raízes, afinal, estavam presentes na fábula desde os primeiros momentos, ainda que fincadas nos fiordes gelados do oeste islandês.

9 comentários:

Tina disse...

Um autor que não conheço mas de cuja escrita já comecei a gostar só por saber que é um bom contador de histórias. Faz-me lembrar, por analogia continental, Eduardo Água Lusa, Mia Couto ou Pepetela, cuja escrita reinventada nos delicia com estórias de sabor africano, de raízes bem agarradas ao imaginário das gentes e locais. Mais uma sugestão que agradeço, pois não há nada como a criatividade exótica para nos oferecer um belo mergulho em novos horizontes... Obrigada, Prof.!

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

O meu conhecimento dos modernos autores de língua portuguesa é muito escasso. Confessei-o na leitura que fiz do último romance em apreço. Do autor também só conheço de ter lido «A desumanização». Com estes dados, poderei dizer que a africanidade está completamente ausente desta história da irmã gémea da menina bonsai. O desenraizamento da lusofonia é total. Critério aceitável porque o ato de criar é livre. Um dia destes, voltarei a visitar Valter Hugo Mãe, para me tirar de cuidados e auscultar outros exotismos estéticos menos glaciares que os apresentados nestas confidências memorialistas de traçado islandês. Muito obrigado pelo comentário e pela visita assídua a este espaço de encontros depois de lidos os livros. É uma satisfação pessoal muito grande…

São Santos disse...

É precisamente o livro que me dá aconchego, neste momento!

Odete Maçãs disse...

O poder das palavras pode ser o maior alimento da alma, na falta delas deixemo-nos levar por o encanto da leitura e a solidão não será nossa companheira!

João Miguel Silva disse...

Já li o comentário e estou curioso. Pode ser que o pai natal esteja bem-disposto.

João Jales disse...

Neste não estamos mesmo de acordo... mais no autor do que no texto... um pouco de açúcar pode ser agradável, mas ninguém come um açucareiro... literatura piegas numa linguagem de telenovela, não é definitivamente "a minha praia".

Gracinda Vidigal disse...

Recebi este livro como prenda de anos e comecei a lê-lo com grande entusiasmo, mas chegado a meio suspendi a leitura e não mais lhe peguei, não com a ideia de desistir de o ler, mas mas porque tudo é negro e chocante na história. O próprio título remete-nos de imediato para um tema que retrata a desumanidade no seu pior, a começar pelo espaço, uma aldeia distante e gélida, perdida nos confins da Islândia, terra de solidão, onde os próprios elementos da Natureza são de tal modo adversos, que deles a população só pode esperar sofrimento. A história protagonizada por uma menina tem tanto de amor como de dor, mas do que já li apreciei sobretudo a forma impressionante como toda a desumanização é descrita, assim como a descrição da paisagem "feroz" da Islândia que nos transporta até lá, que é o mesmo que dizer que a Islândia ganha vida perante os nossos olhos. Segundo o autor é essa mesmo a sua pretensão, fazer com que a Islândia funcione como símbolo de solidão e a morte da irmã da protagonista como símbolo de solidão extrema. Quanto à qualidade literária não me pronuncio porque não tenho conhecimentos que me permitam fazê-lo.

Isabel Montenegro disse...

A mim caiu-me maravilhosamente! Lê-se (aliás, li-o) com um permanente nó na garganta, tal o sentido de isolamento humano que transmite, mas também de amor, aquele que unia as gémeas e perdurou na sobrevivente (embora aquilo não fosse forma de sobreviver...), aquele que tecia os laços envergonhados da relação com o pai, aquele que se foi gerando com o companheiro e que dá sentido ao acto final, todavia inevitável, na sua definitividade. Tudo contado em jeito de poema (prosa poética, entenda-se). E depois há aquela lonjura dos fiordes islandeses, tão ilustrativa de toda a desolação das almas que vão passando... Quer dizer, a mim "caiu-me no goto". Sem dúvida!

Mariana Mesquita Oliveira disse...

Custou-me bastante a entrar... Depois gostei muito. A realidade é, por vezes, mesmo feia e crua. Mas a maneira como ele escreve, como usa as palavras, como transmite sentimentos, é mesmo muito boa. Na minha opinião, claro!