«En skugga rörde sig. | Kanske var det en människa [...] Varje dag badar vi i okunskapen om oss själva.»Henrik Nilsson, Nätterna, Verónica (2006)
Numa passagem rápida por terras escandinavas, soube da existência dumas histórias situadas em cenários portugueses, idealizadas em forma de conto por um jovem escritor sueco. Sete, para ser mais preciso. Tantos como os dias da criação. De regresso ao palco retangular da ação diegética, dirigi-me ao pátio das letras, abrimos em conjunto o mundo em gavetas e lá topámos a seleta pesquisada, uma partitura assinada por Henrik Nilsson com a designação genérica de Um piano em Sesimbra (2006).
Percorridas as páginas que dão corpo à obra, lidas as imitações de vida nelas contidas, detetei ainda umas historietas adicionais inseridas no relato com que abre a compilação. Aquelas que um escritor da capital ouve contar numa noite passada inesperadamente na Associação Mourense para Narração Noturna. Um sono inoportuno impedira-o de abandonar o comboio no destino programado e obrigara-o a descer n’A última estação da linha. O cego que encontrara junto às sombras da rua, a mulher estrangeira que vira num bar da cidade e o homem que olhava pela janela da sala, tomaram a palavra, centraram-se no tema proposto – «perder-se» – e contaram um a um, até ao amanhecer, a história d’«A mulher dos passos lentos», a história d’«Os rostos» e a história das «Notas perdidas».
O impulso de revelar todos os pormenores das histórias contidas no primeiro conto deste livro de contos é enorme. Todavia, o bom senso necessário nestas ocasiões foi mais forte e impediu-me de revelar os seus segredos assim sem mais nem menos. Que a viagem de cada leitor pelo universo das letras feitas palavras se faça na íntegra, sem interferências estranhas e dispensáveis. Que a paráfrase não substitua a frase. Que a clonagem bem intencionada não mate a surpresa da descoberta pessoal. Fascinante, única, irrepetível. Sensações que só a verdadeira arte nos pode e sabe transmitir.
As noites, Verónica, que dão título à versão original da coletânea, levam-nos aos encontros casuais dum investigador português e duma funcionária da limpeza angolana, tidos na sala de leitura da Sociedade de Geografia de Lisboa, e dos diálogos noturnos travados entre mapas, globos, manuscritos e atlas referentes a um império perdido. A versão traduzida remete-nos, em contrapartida, para Um piano em Sesimbra e para as deslocações que um juiz viúvo alfacinha efetua todos os sábados a essa vila piscatória da península de Setúbal, em busca da sonoridade sempre renovada da segunda balada de Chopin, executada por um misterioso pianista, enquanto degusta uma tradicional sapateira.
O protagonismo da grande cidade das muitas colinas, banhada pelas águas azul-esverdeadas do grande rio que lhe traça os limites com a outra banda, é confirmado nos restantes episódios do quotidiano convocados pela ficção. As ruas, praças, avenidas e bairros transformam-se em cenários privilegiados das gentes anónimas que a povoam. Por vezes ganham uma identidade passageira numa personagem que se destaca numa história contada. Os pormenores descritivos que suspendem o tempo encarregam-se de criar a tal expetativa tópica dos filmes de mistério. A secretária dum astrólogo angolano especialista em Aconselhamento espiritual, que vive uma experiência insólita de desespero existencial nos labirintos de Alfama. O despachante alfandegário quase falido que rouba espelhos das casas de banho dos Cargueiros ancorados no cais do Tejo. O venderdor de canais de televisão que imagina uma história de amor e morte vivida n’O terramoto de 1755. O silêncio de Adriana, assumido depois de se ter perdido a confiança no passado e não haver mais nada para dizer.
A habitual autopromoção registada nas badanas e contracapa do livro afirma tratar-se dum conjunto de contos extraordinários, gisados por um autor aplaudido unanimemente pela crítica especializada do país do Prémio Nobel da Literatura. Não duvido da justeza desse juízo de valor, muito embora desconheça a existência doutros títulos que tenha publicado desde então. Espero que a qualidade documentada neste universo narrativo de estreia não fique congelada num tempo cada vez mais passado sem promessas à vista de futuro. Há tantos casos desses por aí que tememos estar na presença de mais um desses sucessos meteóricos de repetição adiada. O ritmo da fábula é forte, a prosa vigorosa, o estilo original. Que venham mais histórias com final suspenso, para que o leitor tome conta do repto, dê asas à imaginação e se ponha a preencher lacunas e a substituir reticências por pontos finais.
3 comentários:
É um tipo de leitura que me seduz bastante, o dos contos que nos remetem para finais suspensos, dando asas à imaginação de cada um. A vida rotineira exige intensidade de reflexão que nos livre do marasmo dos dias e não há nada como a criatividade para nos libertar da morte suspensa no tempo... Obrigada pela sugestão desta escrita criativa e original, Prof.!
A sugestão veio diretamente da Escandinávia e foi aproveitada com muito proveito e deleite. Pena é que uma escrita tão prometedora se tenha deixado ficar pelo caminho. A menos que a matéria tratada não mereça uma tradução para português.
Autopromoções exageradas de badanas e contracapas que põem em causa as qualidades reais das obras, banalizam o ato criativo da escrita e retiram ao leitor a vontade de partir à descoberta dos labirintos das imitações de vida...
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