«Et l’amour, où tout est facile, | Où tout est donné dans l’instant ; | Il existe au milieu du temps | La possibilité d’une île.»Michel Houellebecq, La possibilité d’une île (2005)
Faço tábua rasa das listas publicadas nos rankings da especialidade sobre os filmes que devíamos ver, os discos que devíamos ouvir, os livros que devíamos ler. Tudo isto antes de morrer, está bem de ver, porque depois desse instante capital da vida, a verificação dos Top Ten Lists se torna inviável. A menos que aceitemos a transmigração das almas ou a encarnação dos corpos ao longo dos séculos e milénios, com encontro garantido na intemporalidade. Michel Houellebecq desenvolve magistralmente a temática da imortalidade n’A possibilidade de uma ilha (2005), romance de antecipação, desenhado ao modo das distopias clássicas da ficção científica. Ignoro se foi arrolado como um dos 1001 Books tidos como imprescindíveis para atingir a cultura literária padrão, canonizada por peritos da massificação global, pouco atentos à criação artística da realidade periférica envolvente. Como ainda estou à espera de ler o livro da minha vida, também me dispenso de colocá-lo nessa categoria. Em contrapartida, foi composto por um representante daquele número restrito de autores que me sugerem a descoberta completa da sua obra romanesca. O primeiro passo já foi dado. Os próximos já foram encetados.
A estrutura discursiva centra-se num dupla narrativa separada por 2000 anos de devir genético, o relato de vida de Daniel1 e os comentários que lhe são feitos por Daniel24 e Daniel25. Pacto autobiográfico duma estirpe biológica única, ligada-continuada pelo mesmo código de ADN e repartida-unificada por incarnações sucessivas de clonagem cibernética. Ecos dos universos utópicos de Aldous Huxley e do Admirável mundo novo (1932) são audíveis em ondas sucessivas. Em ambos os textos visionários se pode detetar um crono-topos vindouro em função dos saberes científicos disponíveis no momento da escrita. Paraísos celestiais com morada terrestre. Os dois partilham um culto insano pelo mito da eterna juventude dos corpos jovens. Os dois alimentam um ódio visceral pela degradação dos corpos velhos. A presença controlada de seres superiores, modificados, perfeitos, integrados em grupos privilegiados, opõe-se a uma massa imprecisa de seres inferiores, primitivos, selvagens, nascidos em plena natureza. A felicidade conquistada pelos primeiros contrasta com a infelicidade herdada pelos segundos. As barreiras de proteção lá estão para estabelecer a fronteira imperiosa entre uns e outros.
As analogias pautadas devem-se mais às singularidades do género do que à imperícia dos fabuladores, de edificarem Futuros possíveis, de gerarem sonhos aos incautos e pesadelos aos precavidos. Divergem, sobretudo, na conceção político-social que a fábula atribui aos sobreviventes das grandes catástrofes geológicas e revoluções biológicas que dividiram os cidadãos e deram origem a outras eras. As castas comunitárias predominantes na inglesa são substituídas pelas relações interindividuais exclusivas na francesa. O desejo material é anulado e a perceção espiritual é ativada. A solidão surge e o amor desaparece. Ao conquistar a juventude perpétua, preparada pela ciência persistente dos Sete Fundadores e pelo saber convincente da Sœur suprême, o destino dos neo-humanos rejuvenescidos acaba por igualar o destino dos selvagens envelhecidos. A existência privada das emoções que dão sentido à eternidade reduz-se ao nada absoluto. Ironia trágica da própria condição humana.
Maria23 supera a angústia da morte e parte à procura da vida. Daniel25 segue-lhe o exemplo. Enceta uma viagem de prospeção pelos antigos territórios dos homens à descoberta do lado exterior do mundo. As paisagens devastadas pela Grande Seca ocupam o Grande Espaço cinzento vazio de gentes. Faz-se acompanhar de Fox. Um cão. O único ser biológico com quem interage fisicamente desde que a vida real foi substituída pela vida virtual. Os derradeiros representantes genéticos da estirpe humana que deram pelo nome de Maria e Daniel recusam a condição de isolamento insular a que a ambição de imortalidade conduziu. Recorrem ao livre arbítrio que o modelo eutópico que Houellebecq preservou. Desconhecemos se se terão encontrado numa qualquer comunidade de seres sedentos de saborear o riso e o choro das origens. Mistério insondável. A possibilidade duma ilha enfrentar a sucessão de instantes existentes no meio do tempo é a única certeza visível no horizonte do estar e do deixar de estar. A ponte ontológica erigida pelos homens e mulheres de desfrutar a ciência, de conceber a arte, de entender a beleza, de preencher o vazio, de consumar o amor…
2 comentários:
Uma temática interessante cujo desenvolvimento deixa a tal nota de esperança para este mundo que tende a "robotizar" os sentimentos humanos. O mito da eterna juventude, explorado aqui com base no desenvolvimento acelerado da tecnologia, sofre mais um abalo... Lembrou-me a adaptação ao cinema do romance "The Positronic Man", de Isaac Asimov, cujo tema é o reverso, em que um robot, cuja vida seria eterna devido aos sucessivos melhoramentos na sua estrutura, quis tornar-se humano e investiu tudo na conquista da liberdade e do amor... Uma utopia romântica, mas menos assustadora que uma vida vigiada eletronicamente que nos pretende moldar a um pensamento coletivo por meio de drogas, sem direito à nossa liberdade individual, do romance de Aldous Huxley.
Mais um autor de quem ainda não li nada. Obrigada, Prof., por mais esta recensão pedagógica, que me abre a possibilidade de explorar mais uma ilha eminentemente humana!
A referência ao romance de Isaac Ivanov vem muito a propósito. Vi-o adaptado ao cinema com o título de «Bicentennial Man» (1999), protagonizado pelo Robin Williams. Fascinante. A presença doutras obras de antecipação é clara no texto, muito embora todas elas se diferenciem umas das outras em aspetos fundamentais de conceção romanesca. Apetece-me falar nas sonoridades que aproximam o «Big Brother» da «Sœur suprême», mas fico-me por aqui. A visão negativa do George Orwell no «Nineteen Eighty-Four» (1949) tem pouquíssimas a ver com a tal nota de esperança oferecida por Michel Houellebecq, em «La possibilité d’une île» (2005). O livre arbítrio, nesta metatopia-metacronia mais recente, conseque impor-se à predestinação forçada. Valha-nos isso que já não é pouco.
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