«Habituei-me a ser criticada | por ler livros, | por falar de ciência, de política e de filosofia, | por saber inglês e latim, | por ter demasiadas Luzes para uma mulher. | Alguns homens mais cultos chegaram a invocar Molière para me ridicularizarem...»Maria Teresa Horta, As luzes de Leonor (2011)
Quando no início da década de 70, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa publicaram as Novas cartas portuguesas (1972), a polémica instalou-se no reino cadaveroso ou oásis de mediocridade consentida em que o país dos brandos costumes e jardim à beira-mar plantado se havia transformado. As autoras foram levadas à barra dos tribunais, o livro foi proibido pela censura e o processo das Três-Marias foi convertido num caso singular de mediatismo nacional e internacional. As traduções nos mais diversos idiomas proliferaram e as escassas reedições efetuadas após a queda do regime ditatorial têm teimado em manter a obra sistematicamente esgotada. A questão da condição feminina, equacionada nesse texto composto de fragmentos narrativos, parece continuar a amedrontar a política editorial seguida entre nós, afastando o público leitor dum contacto mais estreito com essa réplica coetânea dos amores marginais revelados nas cinco Lettres portugaises (1669). As tais que Mariana Alcoforado, a religiosa do convento da Conceição de Beja, terá composto e endereçado ao Chevalier de Chamilly, o amante francês que a seduzira e abandonara.
O efeito caleidoscópico de testemunhos convocados pela arte de efabular o universo feminino da criação estética volta à ribalta da república das letras, cerca de quarenta anos volvidos, pelas mãos de Maria Teresa Horta em As luzes de Leonor (2011), longo mosaico ficcionado de prosa poética e poesia integral, em que cada frase é um verso e cada parágrafo uma estrofe. A quinta neta da marquesa de Alorna esboça, neste relato polifónico, uma viagem de revisitação à mulher, poetisa, política, sábia e sonhadora que também foi sua avó, personagem multifacetada, imaginada em forma de papel e tinta, para dar corpo a uma personalidade controversa, recriada através de depoimentos autênticos pronunciados a muitas vozes e sentires. As Marianas epistolares, moldadas pelo barroquismo seiscentista vigente durante as guerras de restauração da monarquia lusitana, saem de cena e dão lugar às Leonores novelescas, forjadas por um iluminismo combativo ainda em construção nas antevésperas das guerras peninsulares movidas pelo império napoleónico.
Os diálogos | monólogos travados à distância de sete gerações são gizados com o recurso constante a documentos oficiais e particulares, feitos e refeitos, repartidos por mil e tantas páginas bem contadas, vinte e cinco capítulos enquadrados por um prólogo e um epílogo, contextualizados por meio século de histórias dentro da história portuguesa e europeia, a promover a passagem do despotismo aristocrático para o liberalismo constitucional. As cartas, diários, cadernos, citações e poemas entrelaçados no romance outorgam um protagonismo estrutural às Raízes | Memórias discursivas, evocadoras de Leonor de Távora, a marquesa executada por ordem do Marquês de Pombal em Belém, ministro plenipotenciário do rei D. José, e de Leonor de Almeida, a condessa expulsa do país por ordem de Pina Manique, intendente-geral da polícia do príncipe-regente D. João. Pelo meio desta escrita neorromântica, tecida de subjetividades dispersas, ficam os lamentos líricos dum misterioso Angelus, ser alado seduzido pela luminosidade etérea de Alcipe, a sedutora de anjos, poetas e heróis.
A reconstituição-reconstrução da vida de Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, encetada ao longo de treze anos de escrita por Maria Teresa Horta está incompleta. A moldura escolhida para pintar o retrato impressionista da defensora das Luzes está balizada pelos tempos conturbados que marcaram o Processo dos Távoras e antecederam o Bloqueio Continental. Efemérides datadas com repercussões duradouras dentro e fora das fronteiras nacionais. Desconhecemos se a neta da Condessa de Oeynhausen-Granvensburgo, valida da rainha-louca D. Maria e dama de honor da princesa-regente D. Carlota Joaquina, frequentadora das cortes de Maria Antonieta de França e Maria Teresa de Áustria, animadora dos salões cultos de Viena, Paris, Madrid e Lisboa, retomará a tarefa hercúlea de traçar os passos da avó nos derradeiros tempos da sua existência de exílio forçado em terras estranhas e de retiro escolhido na terra natal. Nada nos impede porém de acreditar que a mão sem peso da poetisa iluminista aflore de novo o cimo do ombro da poetisa iluminada e que as confidências das duas se voltem a ouvir apesar dos dois séculos de silêncios que as separam.
5 comentários:
Olá Artur! Que belíssimo texto! Quanto ao livro, a vontade d eo ler é imensa, a pilha de outros tantos grande...
Quanto ao livro das "3 Marias"- Novas Cartas Portuguesas, foi reeditado em 2010, numa edição anotada e não está, de todo, esgotado.
Bj
Fico feliz pelo facto de ainda haver exemplares da edição anotada das «Novas cartas Portuguesas» no Pátio à espera de serem lidas. Calmamente. Tal como «As luzes de Leonor». Levei cerca dum ano a degustá-las lentamente, para durarem ainda mais. Aconselho a receita. Vai gostar...
Mais um texto brilhante de quem sabe o que fala e escreve sobre o que gosta. Bem oportuna a introdução sobre o tempo salazarento em que imperava a falsa moralidade, mormente no que respeitava ao universo feminino, mas que felizmente não conseguiu impedir a difusão das "Novas cartas portuguesas"...
Não tenho lido sobre a vida das mulheres portuguesas de fibra que existiram ao longo da história do país, pelo que esta recensão, que deixa entrever nas entrelinhas uma reconstituição interessante, tanto mais porque baseada em documentos históricos. me despertou vivamente a curiosidade. Fez-me lembrar "O leito de Leonor", de Mireille Calmel, sobre a vida da duquesa de Aquitânia, mãe de Ricardo Coração de Leão, embora esta Leonor não se tornasse célebre pela sua cultura, mas sim pelo seu papel nas intrigas palacianas para o domínio das terras de França e de Inglaterra a partir do segundo quartel do século XII. Interessante como o nome Leonor, de origem árabe, que significa "mulher do povo", deixou na realidade registado na história um cunho bem marcante na vida dos povos...
Comprei o livro mas ainda não o li...
A construção ficcional sobre factos históricos ou biografias é um género em crescendo a nível mundial e claro que a personalidade e vida da Marquesa de Alorna deram origem a um livro que toda a crítica elogiou, tanto pelo rigoroso trabalho de pesquisa como pela concepção e construção final.
Mal acabe o que tenho entre mãos,tenho que o ler !
Recebi-o como presente de aniversário no Verão passado, e li-o de imediato sem o misturar com outras leituras. Para ler sem interrupções, para saborear melhor esse trabalho de grande fôlego (de pesquisa, fantasia e poesia). É muito interessante, está muito bem escrito (apesar de ter algumas pequenas gralhas, o que se entende e desculpa num livro de mais de mil páginas...). Um livro merecedor do prémio que recebeu e que merecia talvez muitos outros, se os críticos tivessem tempo de o ler...
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