«Recollection came upon him vivid and exact. Quis viridi fontes induceret umbra?–Who shall veil the spring with shadow and leaf? […] As the pain slunk back to its lair, that line of Virgil had sung in his bruised thoughts. With it the gate of memory swung open and behind it drowsed the rust-green gables and slow canals of the North Country.»George Steiner, Anno Domini. Three stories of the war (1964)
Falar dalguns autores e obras torna-se, por vezes, uma tarefa particularmente complexa. Sobretudo quando nos referimos a alguém que se tem vindo a destacar em áreas tão diversificadas como a tradução, o ensaio, a crítica, a pedagogia, a filosofia e a ficção. É o que se passa com George Steiner, escritor e académico anglo-franco-americano, nascido numa família austríaca de origem judaica, fluente em três línguas modernas (alemão-francês-inglês), duas clássicas (latim e grego) e sabe-se lá que outras mais. Sobra-nos a escolha das temáticas a desenvolver e falta-nos o engenho e arte para as comentar como merecem. Fico-me por um conjunto de histórias de guerra contadas em tempo de paz, publicado há quatro décadas atrás e só agora vertido para português com o título algo provocatório de Anno Domini (1964 | 2008). O habitual atraso a que já vamos estando habituados.
A revisitação dos palcos do drama faz-se através de três atos autónomos de temática comum, feita à boa maneira helénica das trilogias trágicas dos séculos dourados da cultura ática antiga. Os atores do «Sem regresso», d’ «O bolo» e do «Delicioso março», munidos das máscaras, túnicas e coturnos adequados, entram em cena para revelar aos espetadores desse teatro especial, alojado nas páginas dum livro de contos, os fragmentos de vida-morte contidos nas peças convocadas das sombras exumadas do passado, com o firme propósito de iluminar eficazmente o presente. A catarse, imperiosa nestes casos, faz-se através do diálogo travado entre a lembrança e o esquecimento, entre a inscrição e o ostracismo, entre as luzes e as trevas, para que o mundo espetral dos caídos habite a memória futura dos seus filhos, para que as feridas causadas pelas partes beligerantes sejam saradas, para que as cinzas do holocausto não voltem a ocupar no porvir próximo os projetos dos homens.
O primeiro auto contado da coletânea está ancorado na velha questão franco-germânica das hegemonias europeias perdidas. Cinco anos após a invasão aliada da Normandia, o ex-capitão alemão Werner Falk enceta uma viagem «sem regresso» a Harfleur, à quinta Yvebecques, único lugar onde se sentira em paz em tempo de guerra. A ilusão de apagar os fantasmas dessa época conturbada é rapidamente desfeita e a vitória do ódio sobre o amor acontece. O coro de aldeãos aplaude o sacrifício perpetrado e abandona a skene a entoar o cântico final do éksodos.
O cenário e muda-se para Liège, para a casa de repouso de Saint-Aubain, refúgio dum maquisard americano de Belmont e duma judia de Bruxelas. Os dois jovens esquecem-se das dificuldades impostas pela ocupação nazi da Bélgica, entregam-se um ao outro e acabam por ser vencidos pela conjuntura antissemita então vigente. O sobrevivente regressa no pós-guerra ao local onde fora feliz por breves instantes. Leva consigo uma réplica d’ «o bolo» de moka que era servido aos hóspedes nas tardes de domingo. Mas o coro das vozes alucinadas dos residentes perdera a aptidão de relembrar os nomes dos mortos em consonância legítima com a história.
O tríptico encerra no rasto do deus romano da guerra, subentendido num «delicioso março», o mês primaveril dedicado às artes marciais de Marte. A ação salta de Londres para Varsóvia, com referências ao Cairo e desfecho em Cracóvia, e é protagonizada por dois Padres do Deserto, ex-combatentes do exército inglês na grande guerra civil europeia que envolveu meio mundo ou talvez um pouco mais. Os amores impossíveis e interditos anteriormente focados dão lugar aos equívocos e marginais praticados à revelia das convenções que regem os relacionamentos consentidos entre géneros.
O fio condutor dos eventos representados ao público-leitor por palavras escritas pode ser entendido, neste contexto, como uma explicitação de três modos distintos de encarar o conceito de herói: a coragem de voltar ao local da catástrofe e aí ser imolado, a cobardia de fugir da fatalidade e ser poupado pelos deuses, a coragem de assumir as contingências da vida e sucumbir à cobardia do suicídio. Ironias trágicas à procura de soluções alternativas que deem novos sentidos à condição humana e incentivos ao livre arbítrio dos mortais de vencer os desígnios fantasiosos dos imortais. Agora e sempre, para que todos ergamos o dia-a-dia do nosso destino individual, nesta era comum, do senhor ou anno domini.
4 comentários:
De Steiner, um erudito cuja sede pelo estudo e conhecimento foram os principais ideias desde jovem, como que seguindo as pisadas que o pai lhe indicou, li apenas "O silêncio dos livros". Afinal, uma crítica acerba da intolerância e situações bárbaras que sucedem numa sociedade que de esclarecida e desenvolvida nos deixa muitas vezes com um sabor bem amargo na boca...
Um autor difícil, como bem diz o Prof. Artur, que nos traz esta excelente recensão sobre os três contos, onde deparei com a busca incessante pela razão da existência humana, que me faz pensar na beligerância sempre presente entre povos, para não dizer entre seres que deveriam ser próximos mas que se degladiam por interesses individuais. Fruto de heranças históricas ou um livre arbítrio que é mera fantasia do absoluto?
Ao brilhante fecho desta súmula, "Agora e sempre, para que todos ergamos o dia-a-dia do nosso destino individual, nesta era comum, do senhor ou anno domini.", atrevo-me a acrescentar "Amen"!
Muito obrigada por mais esta lição de crítica literária, Prof. Artur!
Um livro muito sombrio, três estórias com a guerra como pano de fundo. Prefiro as reflexões de Steiner à sua ficção e concordo com muito do que escreve e pensa, embora a sua posição na Fatwa sobre Rushdie tenha sido lamentável ... e, para mim, imperdoável.
O Artur apresenta as obras literárias tocando sempre todos os aspetos, que para mim, são fundamentais no texto. Da minha parte, aprecio o lado humano e histórico com particular atenção. E fico com um enorme sentimento de perda quando não leio os livros que o Artur tão objetivamente refere, deliciando-nos com as suas sugestões.
Gostei muito professor Artur, deixou-me com curiosidade para ler. Obrigada!
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