6ª f dia 3 de Junho, às 18h30
BEBER COM OS LIVROS
apresentação, leituras de "Zapping" e prova de vinhos da Herdade da Malhadinha
Eugénia Brito é licenciada em Ensino de Português e Inglês, (1999) e dedica-se à edução e formação de jovens e adultos.
Em 2002 publicou o romance epistolar "Carne Torpe". Depois viveu e trabalhou em Londres, Lisboa e Berlim, onde se dedicou de forma mais regular à escrita. Em Berlim agilizou a edição do seu segundo livro "Fecha a Porta Devagar" (2008) e a escrita de novos textos, onde se inclui este “Zapping sobre as madrugadas idênticas”, distinguido com o “Prémio Literário Cidade de Almada-2010”.
Edição de autor. PVP 15 €
Certidão de nascimento (notas para a leitura de Zapping sobre as madrugadas idênticas)
"I’m larger than life"
Lisboa, 05 de Fevereiro de 2011
Maria Armandina Maia
Bette Davies
"Zapping sobre as madrugadas idênticas" é uma ousadíssima proposta que, essencialmente, obedece à intenção de capturar a História, resgatando dela dois momentos cruciais, a par de uma voz narrativa que constantemente a intersecta, interpela e interpreta.
“Um narrador único e sem nome, bisneto inventado a Mata Hari, projecta o seu domínio em dois momentos distintos da história: um que tem início, em Paris, no dia da morte de Mata Hari (1917), e outro que acontece em Lisboa, 86 anos depois, e que assinala dois acontecimentos com sentimentos violentamente contraditórios: o nascimento da sua filha, por um lado, e a morte da sua esposa, por outro”, diz Eugénia Brito na sinopse da obra.
A intenção de construir uma narrativa erguida em dois pilares temporais é, já em si, uma aventura hoje em dia quase rara, pelas dificuldades que apresenta. Mas Eugénia Brito quis dar maior consistência ao cruzamento constante através do qual se erige esta história. Para tal, dotou-a de um só narrador, a quem cabe criar a unidade pretendida para as vidas narradas. E é muito importante a eficácia deste narrador no “zapping” entre espaços e tempos diferentes.
Porque o limite do constante cruzar de vozes, no interior de um texto pode conduzir à desorganização do mesmo, retirando-lhe a coerência necessária à sua interpretação.
Em Zapping sobre as madrugadas idênticas tal não acontece. A autora, além de ancorar a obra entre duas margens precisas no tempo, confere ao narrador o espaço necessário para proteger a obra do risco de se perder em enredos de difícil percepção.
Mas não só. O jogo que aqui se constrói tem ambições que vão muito além dos dois eixos aparentes ficcionais. Paralelamente às duas histórias paralelas de Mata Hari e do seu bisneto, narrador e personagem, geram-se indícios de uma outra história, extraordinariamente bem urdida, nos interstícios da intriga principal. Nessa outra história, a obra expande-se de forma notável, abrindo um campo de reflexão sobre a vida humana, os seus limites, pulsões e sentimentos.
O facto, pouco usual actualmente, diga-se, do narrador não se “perder” em juízos de valor, abre espaço, tanto na história principal como na intersticial, a uma vastidão de temas que atravessam os factos, adicionando-lhes um sub-romance, não já condicionado pelos limites temporais e históricos, fictícios ou não, mas uma “obra aberta” sem obediência a códigos de ordem estética ou narrativa.
Neste diário atemporal cabem todas as interrogações. A humanidade é aqui o centro das intenções, fortemente atraída pelos abismos, inquietações e dualidade entre vida e morte. Aliás, a carga de sensualidade e erotismo que emana do texto, é um contributo valioso, essencial mesmo, para a sua percepção.
Ao ler este livro, percebemos ambas as propostas da autora, a de trazer ao presente histórias se escreveram, criando história onde a não havia, reunindo e edificando notícias avulsas e fragmentadas, que aqui tomam corpo, vida e unidade.
São estes fios de ligação que distinguem este trabalho de qualquer outro, e que lhe conferem uma força singular, que nos leva a percorrê-lo atravessados pelo fôlego do texto, denso e simultaneamente acessível, a rasgar arquivos, correspondência.
Ou seja, a tentar chegar ao lugar de origem. Não o imediato, atestado na certidão de nascimento, mas sim a memória desse lugar de origem, onde finalmente as personagens se encaixam nos seus papéis e podem, definitivamente, morrer e viver, porque as suas vidas foram resgatadas do esquecimento.
A saudade, força motora crucial desta obra, repousará então como aquilo que fica depois de reconstituída esta viagem, um sentimento apaziguado que devolve ao narrador a capacidade de ser ele próprio e também as vidas que narrou, os factos que viveu, que pressentiu, que desenhou com rigor numa cartografia dominada pela dor da perda, agora reconstruída na mais absoluta fidelidade à verdade dos factos.
Apetece-me deixar aqui dito à autora que já ninguém escreve assim ou que ainda ninguém escreve assim: porque são necessárias duas qualidades a este tipo de obra que se vão tornando raras nestes dias: a paixão e o engenho. Só deste modo se pode perceber a forma segura como Eugénia Brito avança nesta narrativa, a tentar depositar-nos nas mãos um tesouro que a sua (in)formação pariu.
De sublinhar ainda ordem de grandeza das escolhas lexicais, que qualificam esta autora entre uma das muito poucas com capacidade de ser crucial, exacta e verosímil na linguagem, de mestria assinalável.
Qualquer que seja o seu destino, a grande heroína deste livro é a sua própria autora, que, tocada pela emergência de se prolongar num trabalho de escrita, abre caminho a um novo modo de contar, longe dos estereótipos e lugares comuns que todos os dias se publicam, às vezes com pompa e circunstância.
Estou certa que nos tempos próximos, esta autora encontrará o lugar que merece. Desde já fica, como nos compete, como um trabalho a assinalar, um trilho a abrir caminhos.
Cabe-nos a nós não descurar a fímbria de tão nobre intenção.
Maria Armandina Maia
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