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AGENDA

13/02/11

Roberto Bolaño, o terceiro reich e os demais jogos de guerra


«– Ese tablero, como puedes apreciar, es el mapa de Europa. Es un juego. También es un desafío. Y es parte de mi trabajo.»
Roberto Bolaño, El Tercer Reich (2010)
Lidos os livros de que gostamos, só nos resta voltar a abri-los mais uma vez para uma nova visita ou fechá-los por uns tempos e encetar um longo diálogo silencioso com as ideias que despertaram em nós. Se a conversa for frutuosa e a quisermos preservar para uma memória futura, podemos sempre confiar excertos dessa amena cavaqueira a uma folha de papel. Para ser mais preciso neste admirável mundo novo de virtualidades digitais, transformar as palavras escritas com tinta em impulsos elétricos de uma página word com carateres escolhidos de acordo com a inspiração do instante e o assunto tratado.

Roberto Bolaño tem essa rara aptidão de cativar o leitor, de o desafiar a trocar confidências com as personagens dos universos por si inventados, à sombra de casos de vida real com que se cruza todos os dias sem lhe prestar uma atenção especial, tão banais lhe parecem. Pessoalmente, já havia saboreado essa sensação com o 2666 (2004), o último romance de romances ou novelas que nos ofertou já a título póstumo e lhe abonou o passaporte para um muito justo reconhecimento internacional. O mesmo efeito de captura total voltou a ocorrer com O Terceiro Reich (2010), também ele deixado inédito, apesar de ter sido arquitetado por volta de 1989, no início da sua fulgurante carreira de artesão de relatos em prosa. Ignoramos as razões que o terão levado a deixá-lo esquecido, talvez incompleto ou abandonado, no meio de outros manuscritos em boa hora descobertos, que os fiéis depositários literários têm vindo a converter em letra de forma e a confiar ao convívio de todos nós. A partilha tem sido preciosa.

O argumento é fácil de traçar. Centra-se numas breves férias de verão que um jovem casal de alemães, na casa dos 25 anos, goza na Costa Brava espanhola. As peripécias que marcaram a estada no hotel Del Mar, os encontros e desencontros com turistas e nativos, as aventuras e desventuras experienciadas por todos, as conhecidas e as imaginadas, estão meticulosamente registadas no diário do protagonista, que constitui, em suma, o romance que temos entre mãos. Como relato de primeira pessoa que é, a sua descoberta proporciona o mistério, a dúvida, a hesitação. Um cheirinho policial a estimular o enredo. A subjetividade de informação impera. O ponto de vista do narrador a alternar aqui e ali com fragmentos de discursos proferidos em direto pelos restantes intervenientes da intriga. As certezas de uns a colidirem com as incertezas de outros. A fronteira entre amigos e inimigos muito difícil de traçar. Sobretudo quando se sentam em lugares opostos de uma mesa de jogo, com um tabuleiro hexagonal e muitas fichas de permeio, quando se transmudam em estrategas rivais de um wargame que dá pelo nome provocador de Terceiro Reich, quando se convencem que o destino dos homens pode ser vivido duas vezes e de forma diferente. Os combates travados por ambas as partes pela vitória chegam a assumir o contorno de uma luta de vida ou de morte. A imagem dos dois jogadores de xadrez filmados por Ingmar Bergman n’ O sétimo selo a pairar insistentemente no meu imaginário particular, mas com um desfecho menos dramático. No final da contenda, o derrotado não é incorporado na procissão de flagelados como o cruzado medieval. Limita-se a regressar à Alemanha natal duas vezes vencida pelas forças aliadas, no palco real da II Guerra Mundial e no cenário fingido de um jogo de guerra social. O bélico e o lúdico lado a lado a comentarem as efemérides de um passado recente.

Mais do que uma incursão de nos meandros do defunto império germânico, de uma apologia ou anátema aos princípios que nortearam a sua criação, abrigo e queda, este texto quase inaugural de Roberto Bolaño convida-nos a pisar as tábuas do teatro europeu contemporâneo e a rever os dramas que nele se representaram em meados do séc. xx. Alerta-nos para a impossibilidade de reescrever a nosso belo prazer a História, de não estar ao alcance de nós a faculdade de comutar os desastres em triunfos ou de disfarçar os erros em sucessos. Afirma-nos que o destino das nações não se joga aos dados nem ao sabor dos caprichos da sorte e do azar, que os logros e malogros dos heróis e anti-heróis da gesta de um povo não podem ser refeitos por nenhuma vontade humana ou divina. Pensar o contrário é como se fôssemos «fantasmas de um estado-maior fantasma a exercitar-se continuamente sobre tabuleiros de wargames», como se fôssemos «sombras sobre sombras», oficiais de faz de conta a zombar da legalidade dos factos feitos por homens de carne e osso. Esta a realidade nua e crua imposta à imaginação, mesmo quando posta ao serviço dos labirintos insondáveis da literatura.

4 comentários:

Tina disse...

E o diálogo é sempre frutuoso, principalmente para quem tem o privilégio de ler os excertos que o Prof. Artur regista em texto digital.
Mea culpa, ainda não li nada de Roberto Bolaño, nas voltas que a vida me tem dado, apesar da recensão sobre 2666 ter-me então despertado o maior interesse.
O enredo deste romance é bem sugestivo, descrito com o entusiasmo habitual do Prof. Artur, de quem exerce a sua profissão com paixão e prazer, em linguagem sempre lúcida e envolvente. É importante o alerta para o fato de que a História não pode ser reescrita, muito menos em jogos estratégicos de rivais sentados confortavelmente em redor de uma mesa e com dúvidas e certezas diversas sobre o destino dos homens. Alerta que lembra, logicamente, que não se deve olvidar o que de errado foi feito, para ser uma lição sobre as melhores soluções a encontrar para reger o futuro do ser humano.
O ponto de vista do narrador, que escreve na primeira pessoa, é aqui salientado e eu sinto-me uma das espetadoras do teatro que se desenrola perante os meus olhos sobre o séc. XX. É uma sugestão forte que este artigo me transmite, despertando-me logo a imaginação sobre o que Bolaño poderia ter inserido sobre o séc XXI, ainda antes de eu ler o livro.
Os meus agradecimentos, Prof., por mais esta valiosa partilha!

J L Reboleira Alexandre disse...

Como a Tina, e sem a mea-culpa, também nunca li nada de Bolano. Aqui em casa creio já ter visto um, que a companheira trouxe emprestado da «oficina», e que devolveu ao ligitimo proprietário depois de «usado». Mas é sempre com um prazer renovado que recebo estas chamadas de atenção do nosso velho amigo Artur.

Abraço amigo, enquanto lá fora se adicionam mais 25 cms de brancura.

J J disse...

.
Este chileno que virou europeu, este boémio que se tornou pai de família e (por causa disso) este poeta que virou prosador, é um escritor fascinante . Rendi-me completamente aos Detectives Selvagens, não digeri tão bem o 2666 que, leio agora no New Yorker, terá sido publicado incompleto... há um manuscrito entretanto encontrado e que não foi incluído.
Li também alguns contos, entre o genial e o absurdo (para mim, claro, talvez não para outros leitores) e ainda não li este Terceiro Reich onde, pelo que vejo, o autor ressuscita a bela Ingeborg, "falecida" em 2666.
Darei notícias depois de ler.

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

Não a ressuscita n’«O Terceiro Reich», por este romance ter sido composto antes do «2666». A ordem cronológica de publicação póstuma dos textos é que nos troca as voltas. O manuscrito entretanto encontrado talvez nos dê alguns pormenores complementares sobre as 1001 peripécias narradas na obra magna de Bolaño, mas nunca será capaz de colmatar o caráter eminentemente inacabado que apresenta a quem o lê...