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AGENDA

25/10/10

Maria Velho da Costa, as histórias peregrinas de Myra & Rambô...


«Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja.»

Maria Velho da Costa, Myra (2008)
Maria Velho da Costa nunca foi uma escritora convencional, nunca pactuou com o facilitismo do verbo feito por peso e medida, nunca se curvou ao gosto esteriotipado das leituras inócuas e ingénuas. Sempre escreveu sem papas na língua nem meias tintas, sem rodeios nem paninhos quentes. Disse sempre o que tinha a dizer e não aquilo que os outros gostariam de ouvir. Contra tudo e contra todos. Em nome individual e coletivo. A polémica gerada em torno das Novas Cartas Portuguesas (1972), tecidas em parceria com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno – com quem formou as «Três Marias» – não lhe quebrou o ânimo de prosseguir o rumo pessoal por si traçado de se mover no mundo da literatura. Aquele que sempre se regeu pela recusa dos valores tradicionais anquilosados pelo tempo. A condição feminina tem marcado uma presença constante neste percurso de palavras feitas em forma de letra. O exemplo libertário de Mariana Alcoforado, a religiosa de Beja e presuntiva autora das anónimas Lettres Portugaises (1619), a inspiradora atestada da continuação moderna referida, que tanta tinta têm feito correr ao longo de quatro centúrias mal contadas, será depois retomado em muitas outras páginas de ficção romanesca e de feição ensaística. As personagens até podem mudar de nome, identificar-se com uma Maina Mendes (1969), viver em Casas Pardas (1977), rescender aos aromas revolucionários da Lucialima (1983) ou frequentar os ritos místicos da Missa in Albis (1988), que o empenho inconformista da mulher se mantém inalderado. Até à vitória final, diriam os panfletos políticos que a autora só registaria como mero exercício de estilo ou testemunho literário de uma época.

O último romance de Maria Velho da Costa conta-nos a vida de Myra (2008), uma jovem imigrante russa em terras lusas, que tanto assume ser apelidada de Sónia, Sophia, Helena, Ekaterina, Catarina, Kate, como ser alcunhada de Mula Ruça e Maria-Flor. Quando a vemos pela primeira vez, encontramo-la entregue à mais perfeita solidão e a caminhar em direção ao mar. Depois, descobre a presença de Rambô, um cão de luta, um cão de morte, um pitbull terrier ferido, tão mais infeliz do que ela, e que, por isso mesmo, furta ao maltrato dos donos e passa a chamar por César, Fritz, Piloto, Douro, Ivan. É que, como a própria trama novelesca regista e as vicissitudes do dia-a-dia se encarregam de confirmar, «um nome é um destino». A relação de amizade entre a criança indefesa e o animal feroz e as peregrinações continuadas dos dois pelos sendeiros do infortúnio conduzem-nos, com alguma fatalidade, aos universos de uma certa picaresca feminina que a inventiva dos séculos de ouro peninsular popularizou. A genealogia algo duvidosa da protagonista, os castigos físicos que lhe são infligidos, a fome, o medo, o abandono a que é votada, as mentiras, os disfarces, as falsas identidades, os encontros fortuitos de caminho, os amos e protetores, o convívio com o vício e a marginalidade, a arte e manha da sobrevivência quotidiana não faltam. Só que o humor tão típico do género prima pela ausência. É o horror que prevalece ao longo de toda a tessitura efabulativa. A ironia bem-disposta que convida a uma boa gargalhada é substituída pelo sarcasmo mais desapiedado que imaginar se possa, em que não há lugar a um simples sorriso ou esgare nervoso. Escusado será dizer que a instância narrativa lhe nega um final feliz, para a aproximar ainda mais da própria realidade que nos rodeia. A atual, a pós-moderna, a inaugurada com o terceiro milénio.

A escrita da Maria Velho da Costa é tudo menos simples. Já foi etiquetada de polifónica, labiríntica, fragmentária, caleidoscópica. Myra não foge em muito a este quadro de experimentalismo linguístico. Trata-se de um relato memorialista exposto a várias vozes, na fronteira da parábola e da fábula, a poucos passos do realismo mágico da latinidade ibero-americana. O processo de amadurecimento da autora enveredou para um discurso mais fluido, mais fluente, mais fácil de seguir, talvez por estar centrado na existência de uma criança a despertar para a vida, ainda que obrigada a comportar-se como uma adulta a quem negaram o direito à infância e à adolescência. Segundo a lição do texto, expressa pela heroína ao fiel companheiro de adversidade, «Há dempre mais maus que os maus, Ivan. Mais terríveis do que os terríveis». Amarga consolação para esta nossa inútil passagem pela mundo, esta nossa travessia de um deserto sempre às margens do «dano» e nas esteiras da «dor».

4 comentários:

Tina disse...

Myra ou Sónia ou Kate, pois bem salientas a afirmação de que «um nome é um destino», traz-me em primeiro lugar a realidade que se vive actualmente, em que as crianças são infelizmente vítimas de maus tratos num século que deveria mostrar já que o ser humano tinha aprendido o respeito por si mesmo, que passa pelo respeito ao seu próximo.
A vida da jovem ao lado do seu companheiro de infortúnio, através das tuas palavras só poderá ser magistralmente descrita pela autora, numa escrita tão viva e realista que aproximas do realismo mágico, avivando mais o apetite para saborear o livro.
Apesar da nostálgica constatação da "nossa inútil passagem pelo mundo", espero encontrar no livro "o véu de clemência" que suaviza um pouco esta nossa travessia pela vida terrena.

Liliana disse...

Olá Artur, bem haja por mais esta recensão, como sempre aprofundada e sentida.

Gostei muitissimo deste livro - pela actualidade da história, sim, mas sobretudo pela forma de a contar.
É verdade que há dureza, mas poderia ser de outra forma perante aquelas personagens, perante as suas vivências? Não creio, a não ser que Myra não fosse a rapariga inteligentíssima e sensitiva que Ma. Velho da Costa criou... era este "tom" que a autora certamente desejava e com ele me deliciei :)
Gostei muito também, ou sobretudo, da construção da narrativa e da linguagem. Não diria que não é "simples", pois a escrita parece-me de fácil entendimento para quem goste de saborear o texto, embora rcorra ao uso de termos quiçá actualmente menos usuais mas que, por acolherem (também pela forma como é construído o fraseado)grande carga imagética e mesmo poética, tornam o texto belíssimo.

Uma scrita de grande maturidade, que recomendo vivamente.

Liliana disse...

Ah acrescento, Artur: recensão que também, pela qualidade da análise e da escrita, se lê com imenso gosto :)

Artur Henrique Ribeiro Gonçalves disse...

O reconhecimento de uma escrita maior...