«Eu tinha pensado chamar-lhe Café Central, mas quando encomendei a tabuleta ao Praga de Mãe, ele veio com aquelas falinhas mansas, que a República tinha sido implantada há duas semanas, que era um nome bonito e poderoso, e tal e coisa. E, olhe, deixei-me convencer.»Álvaro Guerra, Café República (1982)
O Café República (1982) de Álvaro Guerra é um texto datado no tempo. Tal como a própria implantação da república, cujo centenário agora se celebra com toda a pompa e circunstância que a data exige e a crise permite. Para os seus obreiros, o velho mito sebastianista e messiânico do desejado estaria concluído. O encoberto tinha escolhido a sua manhã de nevoeiro, montado o cavalo branco e partido à desfilada para resgatar o país da decadência em que o mergulhara trezentos e tal anos atrás com a aventura desastrosa de Alcácer-Kibir. A panaceia milagrosa de todos os males gizados pela monarquia estava encontrada. A promessa de redenção dos ideais da liberdade, fraternidade e igualdade tantas vezes proferida e outras tantas adiada, tinha enfim chegado pelas mãos de uma mariana portuguesa, de maminha ao léu e barrete frísio sustentado por um ramo de oliveira, ou de louro ou de espigas de trigo, como a iconografia nacional registou e as moedas de escudo puseram a circular. A realidade, contudo, rapidamente se encarregou de desvanecer essa ilusória esperança de renovação e de dilatar o compasso de espera num devir histórico sem horizonte à vista.
O painel inicial da «Trilogia dos Cafés» remete-nos para o período compreendido entre as duas guerras mundiais. Aquele em que o novo regime deu os primeiros passos incertos e desajeitados para, logo de seguida, dar um trambolhão colossal que lhe custaria quase meio século de aturado esforço a recuperar e a levantar-se. Entre o atentado de Sarajevo e a rendição do Reich alemão, a República Portuguesa vitoriosa no 5 de outubro de 1910 acabou por cair no 28 de maio de 1926 e ser revezada pelo Estado Novo. A revolução nacional dos militares façanhudos de Braga a abrir o caminho ao professor de Coimbra e futuro ditador de Lisboa sem direito a nome. Ao invés do duce italiano, do fürer germânico e do caudillo espanhol, o anunciado salvador da pátria (mais um) e enfático mentor da «casinha portuguesa» só será referido por perífrases depreciativas feitas à medida do presidente do conselho, filho de Santa Comba e senhor de São Bento, o Manholas, o Botas, o chefe. Excecionalmente, uma criança de dois anos soletrará Sanazar e Beatriz Costa cantará Falazar numa revista do Parque Mayer. A inocência e a irreverência de mãos dadas.
A fábula é uma incursão da história fingida na verdadeira, um «ciclo de pequenas histórias» coligidas no Folhetim do mundo vivido em Vila Velha (1914-1945). Assim reza o subtítulo do romance inaugural do tríptico. É também uma saga de sagas, uma crónica de crónicas, uma gesta de gestas. É o relato aturado das efemérides dessa terra de pescadores e campinos, de lavradores e ganhões, de literatos e políticos, de fidalgos e plebeus, situada a 50Km da capital, cercada a norte por quintas, casais e cabeços e a sul por lezírias, rios e ribeirão. Espaço cénico criado num espaço dramático real. Palco ideal para declamar as inexoráveis misérias dos povos, as vividas pelas famílias nucleares e as comentadas nas tertúlias oficiais. As casas grandes e pequenas a deslocarem-se, conforme os ditames sociais e modismos vigentes, para a farmácia, a mercearia, a filarmónica, o clube, a barbearia e o café do burgo. Sobretudo este último, ribalta singular do sentir coletivo dos borda-d’água e ponto nevrálgico de todo o tecido narrativo, o revolucionário Café República, depois transformado no conservador Café Central. A censura e a tortura, as prisões e as deportações, a caça às bruxas e a queima de livros soaram mais forte no espírito avisado do proprietário, que preferia vê-lo de portas abertas às cavaqueiras certas dos clientes do que às devassas incertas da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado.
Neste contexto novelesco, de corte neorrealista tardio, são dados muitos vivas à república, a portuguesa e a espanhola. Depois a coragem das personagens de papel e tinta cede passo às pressões das personalidades de carne e osso. Os vivas à coisa pública repetem-se todos os anos, como um ritual obrigatório que o uso tem despido de sentido e a apatia vulgarizado. O desejado ainda se mantém nessa ilha encantada coberta pelo nevoeiro. Na Vila Velha de então como neste nosso mundo novo de agora, o compasso de espera a marcar o ritmo lento dos dias...
3 comentários:
Quanto à República,de que celebramos hoje o centenário,ela não foi,provavelmente devido ao facto de ter sido "implantada" por uma élite social,económica e cultural,a realização do sonho de Igualdade,Liberdade e Fraternidade.
Ao excluir os analfabetos e as mulheres (havia menos de 500.000 eleitores),ao ignorar as aspirações populares de uma vida melhor,o regime entregou o poder aos militares e depois a Salazar, com uma resistência formal de meia-dúzia de pessoas e o apoio ou indiferença da maioria dos portugueses.
Álvaro Guerra foi um homem do Mundo,que viveu com paixão,lutou por aquilo em que acreditava e a sua escrita tem as virtudes e os defeitos da sua forma militante de estar na vida.Esta trilogia dos cafés é a sua visão de parte do séc XX, não propriamente uma História desses anos.
A recensão do Artur é,como sempre,bem estruturada e bem escrita,é sempre um prazer vir aqui.
JJ
Obrigada Artur, pelo oportuno post.
Li há muito a trilogia e, como habitualmente :(, recordo apenas que...adorei! Talvez à época o estilo fosse para mim menos importante que a "mensagem", dada que sempre fui a "militâncias", mas ainda assi, dada o vivo gosto que me despertaram, creio que a forma literária não seria desmerecedora.
Teria de os reler para aferir se realmente estão datados... mas tempus fugit e, hélas, talvez seja melhor ficar com o registo da impressão daqauela primeira leitura :)
Um enquadramento mágico que traz a vontade de reler a Trilogia dos Cafés de Álvaro Guerra e, neste caso, uma oportunidade de acompanhar a celebração do centenário da República longe dos intermináveis discursos oficiais que teimam em ignorar a crise social que o país atravessa, assim como das festividades oferecidas ao público, que até há pouco não mostrava interesse em ir dar um salto em queda livre no Terreiro do Paço... talvez pela analogia tão óbvia com a crise instalada e sem data marcada para melhorar.
A República foi instalada numa altura em que existia no país mais de 75% de analfabetos e, apesar dos objetivos louváveis para melhorar a vida da população, apostando especialmente na Educação, a instabilidade política e a eclosão da primeira guerra mundial deitaram por terra tais desideratos e a ditadura encontrou terreno fértil para a sua implantação durante quase meio século.
Cem anos depois, com a melhoria relativa do nível de vida no país, o povo continua a ser o bode expiatório da má gestão dos que detêm o poder. Entretanto, decorreu a festa no Centro de Investigação Champalimaud, cuja inauguração o governo oportunamente aproveitou para mais uma vez tentar mascarar o real estado das finanças no país...
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