«… es un triunfo de la vida que la memoria de los viejos se pierda para las cosas que no son esenciales, pero que raras veces falle para las que de verdad nos interesan»Gabriel García Márquez, Memoria de mis putas tristes (2004)
Na noite em que soube da morte de Gabriel García Márquez, comecei a ler pela segunda vez a Memória das minhas putas tristes (2004), a última novela que publicou e terá escrito. Durante todo essa sexta-feira santa, sábado de aleluia e domingo de Páscoa, voltei à companhia privilegiada do mestre das letras hispânicas com dimensão universal, há muito condenado a ficar para sempre entre nós, apesar de ter partido para uma outra dimensão e estar impedido, por força das circunstâncias, de passar para o papel as suas histórias imaginadas no seio dum realismo maravilhoso que ajudou a criar e a divulgar pelos quatro cantos da terra. Decorrida uma década sobre a primeira visita ao livro com um título abertamente provocador, o fascínio da viagem voltou a instalar-se em toda a sua plenitude, a demonstrar que em arte não existem palavras feias nem bonitas. Tudo depende de quem as diz, a quem as dirige e de como o faz. O professor falhado de gramática castelhana e latim, o alimentador medíocre de notícias e articulista de rotineiras notas dominicais num periódico de La Paz e de críticas musicais esporádicas nas gazetas da capital boliviana, voltou a celebrar o seu nonagésimo aniversário, aquele em que projetou oferecer-se uma noite de amor louco com uma adolescente virgem.
A referência histórica à assinatura do tratado da Holanda que pôs fim à guerra civil colombiana dos Mil Dias (1902), tinha então 32 anos, associado a outros pequenos pormenores como a morte dos pais, permite-nos situar o início do relato a 29 de agosto de 1960 e a sua conclusão no mesmo dia e mês de 1961, quando acabava de perfazer os 91 e planeava ultrapassar a simbólica barreira dos 100. Nesse curto período de tempo, procederá a um balanço breve de toda a sua medíocre existência, apenas amenizada pela leitura assídua e audição atenta dos clássicos e pela lembrança revigorante das centenas de prostitutas a quem tinha pagado para passar uns curtos instantes de solidão partilhada, cujos nomes, idade, local e estilo tivera o cuidado de registar para identificação futura das suas tristes meretrizes. O real e o imaginário tomam conta do discurso e a memória do grande amor da sua vida perpassa pela centena de páginas do testemunho pessoal, repartido por cinco capítulos ou atos dum verdadeiro hino às paixões humanas: a virgem adormecida, a noiva abandonada, a mulher pintada, a ninfa desaparecida e a deusa regressada. Poema épico desenhado em prosa ou corrido mexicano cantado ao ouvido da amada: La cama de Delgadina de ángeles está rodeada...
O derradeiro texto de Gabito ou Gabo para os amigos – entre os quais se encontram, naturalmente, todos os leitores das fábulas por si reveladas à grande aldeia global – é, também ele, um autêntico ensaio sobre a velhice, a que se sente por dentro e a que se deixa ver por fora, uma reflexão sobre o processo de envelhecimento e de todas as misérias e glórias que lhe estão associadas. As falhas de memória, a falência da juventude eterna, os escombros do passado e os vazios do porvir, a ausência de fronteiras entre os factos sonhados e os factos vividos, entre a alucinação e o milagre, as ambiguidades da idade que se tem e da idade que se sente, o horror de comprovar que se envelhece mais e pior nos retratos do que na realidade. Observações experientes de alguém que conhece muito bem a matéria e que teve a oportunidade de viver para contá-la.
Disseram os mass media de todo o mundo, com todo o aparato sensacionalista costumeiro em ocasiões análogas, ter Gabriel García Márquez morrido a 17 de abril de 2014, uma quinta-feira de endoenças, na Cidade do México. Pura ilusão, se cada vez que abrimos um dos seus livros ali está ele a contar-nos histórias fabulosas mergulhadas no realismo mágico de que são feitas. As personagens a que deu voz nos seus retábulos de vidas fingidas de tantas outras existidas é que têm razão. Sempre que as visitamos nos livros em que habitam, voltam a revelar-se em mortes anunciadas e anos de solidão, em enterros, naufrágios e funerais, protagonistas de amores em tempos de cólera, de prazeres e outros demónios. Labirintos, viagens, fantasmas. Incríveis e tristes histórias, relatos clandestinos e crónicas peregrinas, como a desse nonagenário memorialista que, no derradeiro parágrafo das suas confidências pessoais, revela ter encontrado finalmente a vida real, com o coração a salvo e condenado a morrer dum bom amor na agonia feliz de qualquer dia depois dos seus cem anos.